21 de janeiro de 2011

O Peso ...


    Será que a formiga de fato aguenta tranquilamente aquele peso todo que a gente vê ela carregar, enfileirada atrás das outras? Será que no fundo, lá dentro, ela não sente a força nas perninhas fraquejar? Nem que seja por poucos segundos? Eu acho que sim, acho que as formigas cansam as vezes, como nós. Há momentos em que aquela folha gigante carrega com ela o peso do mundo inteiro, gravidade, problemas, planos, humor. E a gente cede, meio milímetro. E isso já é suficiente pra toda a cadeia ser posta em risco. Esse meio milímetro que a gente cede necessita então de um esforço dobrado na hora de ser reerguido, até triplicado.
    O mundo as vezes age assim. Fecha as portas, o sorriso se desfaz, as placas dizem que "não há vagas". E assim a rotina continua.

    O homem entra no bar, ele aparenta estar na casa dos 60 anos de idade, mas a barba longa torna suas feições talvez um pouco mais velhas e carrancudas, o vento da rua faz barulho e em alguns segundos cessa quando ele fecha a porta. Se senta em uma mesa e pede uma dose de whisky. Então ele abre um livro e começa a foleá-lo como que procurando por alguma parte ou frase mas sem muito sucesso. Dois garçons perto dali estavam conversando, um mais novo pergunta ao mais veterano:
    - Desde que comecei a trabalhar aqui eu vejo esse homem vindo pra cá ler, ele já faz isso há muito tempo?
    - Todo dia é igual, ele chega aqui mais ou menos no fim da tarde, pede um whisky e fica foleando algum livro aleatório, anota frases, parece que vem pra cá só pra ler. E isso deve fazer mais de 2 anos se não me engano.
    - Sério? Estranho isso, e nunca é o mesmo livro?
    - Geralmente muda, mas as vezes ele vem com o mesmo livro por dias a fio.
    O homem com certeza não nota que está sendo observado, continua a folear seu livro, como se estivesse estudando ele. Os olhos do homem ganham um brilho estranho enquanto ele se detém naquele ritual. Ele, o livro, e o whisky. O último vai se esgotando a goles mínimos de tempos em tempos.
    Após algumas horas um dos garçons, o novato pergunta ao veterano:
    - E o que esse homem faz da vida? Tu sabes? Alguma vez ele entrou aqui acompanhado?
    - Olha já me disseram que ele costumava ser escritor, poeta, essas coisas. E dizem que era dos bons. Mas não sei se é verdade. E nunca vi ele com ninguém por aqui não, sempre sozinho, lendo algum livro, e rabiscando aqueles caderninhos. Dizem que é meio louco sabe?
    O garçom mais novo não conseguiu esconder a curiosidade sobre aquele homem que se encontrava ali, quieto, lendo, e escrevendo. Passado algum tempo, já perto da hora do bar fechar ele resolve ir tentar falar com o homem.
    - O senhor me dá licensa?
    - Hmmm, pois não?
    - Eu fiquei notando que o senhor sempre vem aqui no mesmo horário, lê algum livro e fica sentado quieto. Peço desculpas pela intromissão mas isso me chamou bastante a atenção.
    - Pois sim, é um hábito que eu tenho há algum tempo.
    - E me disseram que o senhor é escritor, é verdade?
    - Ja fui, mas há anos que não escrevo nada próprio.
    - E por que não?
    O homem mais velho nota o interesse cada vez maior do jovem garçom e, assim, fecha seu livro e resolve dar a ele um pouco mais de atenção.
    - Sabe, aqui é o momento em que eu posso me sentir um pouco mais tranquilo. Eu não tenho mais muita coisa nessa vida, nunca tive filhos, perdi minha mulher há dois anos, e com ela toda minha vontade de produzir qualquer coisa. Sobre o meu trabalho, acho que nunca escrevi algo que eu realmente tenha me orgulhado. Se o fiz, não posso dizer, acho que perdi também todo meu orgulho no momento em que perdi ela.
    - Nossa ... meus pêsames
    - Tudo bem, essas coisas acontecem, infelizmente eu não consegui me levantar, esse peso nunca saiu de cima de mim. Me acostumei com essa derrota
    - Mas ouvi dizer também que o senhor era bem bom escrevendo.
    - Bem bom é bastante relativo não é? Questão de opinião. Talvez eu tenha já produzido algo "bem bom", mas minha vida foi me parecendo cada vez mais vazia com o passar do tempo, eu não tinha mais nenhuma inspiração própria. Como falei, há dois anos me livrei de qualquer orgulho ou vaidade. Acabei por desistir disso, resolvi só apreciar o trabalho dos grandes enquanto tomava minha dose quieto num canto.
    - E esse livro que o senhor está lendo agora, qual é?
    - Grandes Esperanças, Charles Dickens, é interessante, fala sobre um garoto pobre, que muda de vida rapidamente. Assim como foi comigo, as pessoas tinham grandes expectativas quanto ao futuro dele. No meu caso, nunca fui capaz de superar, nem mesmo igualar a nenhuma dessas expectativas.
    O jovem garçom, já meio sem saber o que dizer apenas tentou demonstrar uma certa simpatia a situação do velho homem.
    - Não se incomode com a minha história garoto. Talvez eu só tenha me entregado cedo demais, nesses poucos segundos tu ja me pareceu alguém bem mais otimista do que eu.
    O velho largou o dinheiro na mesa, pegou seu livro e se levantou.
    - O máximo que eu sinto poder fazer é servir de exemplo. Talvez a regra seja essa. Alguns são naturalmente mais fortes que outros. Alguns simplesmente são mais bem preparados pra aguentar essas pancadas.
    O homem sai do bar, da mesma forma que entrou. O vento ja não é tão forte quanto antes, a luz na rua já provém dos postes. E o jovem garçom fica ali pensando, no peso da vida, nos problemas, em como cada um de nós encara eles. E no quão difícil a cicatrização pode se tornar por vezes ...

2 comentários:

WaL disse...

so sad...

jandora disse...

bem bom...me inspiras moço...