3 de maio de 2011

O dia em que me reencontrei ...



Parei de ler o livro que estava lendo. Olhei para o relógio e eram 1:30 da madrugada. Aquele livro era bom, me prendia, mas simplesmente não estava me inspirando a nada. “Droga, esse é o problema da literatura pop, geralmente não nos leva a lugar nenhum”. Pensei comigo enquanto colocava o marcador e pousava o livro na cabeceira da cama. Pela janela entrava a luz amarelada do poste que ficava exatamente em frente ao meu quarto.  Tomei um último gole do meu caneco com água que mantinha ao lado da cama e me levantei.
Abri o vidro e uma rajada forte de ar frio varreu meu quarto. Algumas folhas voaram e estremeci um pouco. O inverno chegava impiedoso apesar da noite estrelada, e o frio gelava até os ossos em poucos segundos. Fui até a sala enrolado em um cobertor e me deitei no sofá. Nada na TV. De fato eu não esperava nada útil mesmo. O canal de filmes antigos passava alguma história no estilo noir e eu fiquei assistindo por algum tempo. Meia hora depois cansei. Peguei o telefone e liguei para Sean. Tocou cinco ... seis ... sete vezes e então ele atendeu.
- Que você quer James? – Trovejou do outro lado da linha com a voz rouca.
- As coisas não andam bem ultimamente, acho que preciso me distrair. Ocupado?
- De jeito nenhum meu caro, pode vir pro trailer.
Nessa época as coisas não iam bem pro Sean. Ele tinha perdido muita grana com as apostas no poker e andava devendo ainda alguma coisa. O orgulho o impedia de pedir ajuda dos amigos e até mesmo um teto, de modo que ele estava morando em um trailer num estacionamento perto da saída da cidade. Por mais estranho que pareça eu achava isso completamente normal para um cara como o Sean.
Nessa época as coisas não iam bem para ninguém de modo que meu carro era um Impala 62 que cuspia mais gasolina do que fumaça pelo cano. Coloquei o máximo possível de roupa e fui em direção ao estacionamento do Sean.

***

Chegando lá encontrei Sean com um charuto e meia garrafa de whisky em cima de uma mesinha na frente do trailer. Com ele estava Sam e seu violão. Saí do carro tremendo de frio e Sean indagou falando alto:
- Resolveu aceitar comemorar mais um ano de vida?
- Nunca gostei de aniversários, Sean. Acabam me lembrando sempre dos objetivos não cumpridos, igual virada de ano.
- E o que te fez sair de casa então? – perguntou rindo.
- Tédio? – disse eu dando uma risada também – E o que estamos ouvindo? – perguntei para Sam.
Sam me olhou calmamente e disse – Parabéns pela data meu amigo. Não estamos ouvindo nada no momento, só relembrando umas velhas histórias. É incrível relembrar tudo que o Sean já fez.
- Grande idéia! Ouvir histórias do Sean seria uma ótima pedida. – exclamei já mais feliz e me sentindo até com menos frio.
Sean cutucou as brasas na sua frente na pequena churrasqueira portátil e então colocou mais lenha ali. Começou a relembrar então algumas histórias antigas. Loucuras de viagens para lugares estranhos e até mesmo das idas até o Canadá pela costa oeste, encarando toda a paisagem pela qual um dos nossos heróis já havia passado certa vez. Lembramos das vezes em que dormimos em beira de estrada e em estações rodoviárias. De como Sean sempre tinha um sorriso no rosto e uma gargalhada para as pessoas. Era o cara são mais louco que eu conhecia. Estava ali um dos heróis noturnos das antigas. Já havia dormido em mais bancos de praça do que qualquer um que eu conhecia. Tudo que pensava botava em prática. Talvez essa fosse a frase para descrever Sean, um cara da prática. Tudo que aprendera na vida aprendera vivendo. E era por isso que se encontrava ali, com sua “casa sobre rodas”, sempre sorrindo, mesmo que tivesse que trocar a garrafa de Chivas por algum whisky barato.
- Não consigo nem lembrar quanto eu devo ainda praquele Barman em Quebec. Acho que passamos a noite inteira tomando vinho do porto e saímos sem pagar nenhum tostão quando eu joguei um charme para a mulher do dono do bar. – dizia ele rindo sozinho.
- Bons dias. Faz tempo que não temos bons dias assim, caras. O que anda acontecendo?
- Nossos espíritos não são mais os mesmos. Ando sem compor, você anda escrevendo pouco, está sempre sem inspiração. Precisamos de espírito! – vibrou Sam.
- Ando sem experiências sobre as quais escrever, preciso fazer coisas diferentes novamente. As loucuras me inspiram.
- O Sean é o único que vive a arte – disse Sam.
- É, e nós não andamos nem vivendo e nem criando. Estamos quase nesse vácuo imaginário, tentando viver das lembranças do que costumávamos ser. – comecei a discursar, mas resolvi parar por ali.
- É a estação, mas o vento muda logo. – Sam completou.
Nos encaramos nós três por alguns segundos sem falar mais nada e então demos uma risada compulsória. Sean quebrou o silêncio:
- Tem bolo de laranja ali dentro, não é nenhuma maravilha mas ao menos é bolo no dia do aniversário.
Entrei e busquei o bolo de laranja. Repartimos e comemos, Sean o fez descer com um belo gole de whisky e então largou:
- Diabos! É hora de dormir, meus caros.
        Concordamos sem precisar falar nada, Sam e eu. Cada um entrou em seu carro e tomou seu caminho. Estranho falar em caminho. O meu seguiu direto para meu apartamento. Parei em um posto rapidamente e comprei um fardo de cerveja e um lanche pronto. Rever Sean foi talvez já o necessário para lembrar que ainda posso criar. Para lembrar também que eu estava vivendo pouco demais naquela época. Que precisava encontrar de volta meu espírito e não deixar ele vagando sem rumo e sem meu consentimento enquanto encarava uma folha em branco na frente do teclado.

Um comentário:

Michele Moura disse...

"Rever Sean foi talvez já o necessário para lembrar que ainda posso criar." -- Esse trecho me fez lembrar algo que escrevi... e que realmente sinto: só o fato de saber que meus amigos (os poucos e bons) andam por aí tocando suas vidas, seguindo seus caminhos (quaisquer que sejam), já é suficiente pra me fazer sentir que tudo está em seu lugar e que por isso eu também posso continuar. :)