7 de maio de 2011

“Ridin’ the blues away ...”


            A cerveja na garrafa de Sam balançava descontroladamente enquanto cruzávamos uma estrada de terra esburacada em algum ponto do interior de um estadinho do sul. Mal havia luz para se enxergar a estrada e eu pisava até o acelerador encostar na lata. O motor berrava como se pedisse um pouco de descanso, mas nós não tínhamos idéia de parar por toda noite. O Impala ia numa média de 110km por hora e eu via o sorriso no rosto de Sam enquanto Muddy e Sonny Boy tocavam no velho rádio. A qualidade do som era uma porcaria, mas com a quantidade de cerveja que já havíamos consumido era como se estivéssemos na primeira fila ouvindo os próprios, e pudéssemos ver o rosto de Sonny se apertando enquanto soprava com força a harmônica. “GOT MY MOJO WORKING!!!” lascava a mil enquanto as luzes me guiavam e no retrovisor eu só avistava poeira e então a escuridão se fechando.
            - Cara, essa noite vai ser cansativa. Mas se tudo der certo estaremos por lá amanhã pela manhã. E daí é só encontrar um hotel barato e teremos três noites inteiras para curtir tudo que o rock and roll, o blues e o jazz sulista podem nos oferecer. - Sam berrou tentando ultrapassar o som do carro e do rádio.
            - Isso! - berrei e concordei com a cabeça dando uma guinada em uma curva fechada para a direita.
            O carro jogou a traseira e eu puxei o volante todo para a esquerda tentando manter a frente, NA FRENTE. Ouvimos um barulho no banco traseiro e então Sean gritou:
            - DIABOS, James!!! Aprende a dirigir seu pé de chumbo!!! - trovejou ele tentando se acomodar novamente.
            - Pra quem é um aventureiro você parece muito cuidadoso com a estrada essa noite, Sean. E não me chame de James, só me chama assim quem não me conhece. - falei virando a cabeça para trás e me desligando da estrada.
            - Vá pro inferno, Jamie. - gritou ele e se deitou novamente para tentar continuar dormindo.
            Uma dupla começa a tocar no rádio. Não reconheço a voz, parece uma Ella Fitzgerald com a voz mais fina. O banjo grita a um milhão de vibrações por minuto e Sam balança a cabeça incontrolavelmente como se hipnotizado pelo som.
            - Hey, sabe o que diabos está tocando? - perguntei então.
            - Nem idéia, cara. Mas a música é “Two Time Loser”.
            - Bela música. - disse eu.
           - Mais do que isso. Bela e verdadeira. Digna de um verdadeiro artista. Tem coração e espírito.
            - E tem uma bela voz interpretando ela. – completo sorrindo.
            - Isso era a boa música, meu velho.
            A seguir ouvimos o Hooker interpretando Tupelo e eu comentei:
          - Sabia que essa música fala sobre uma enchente que ferrou com várias cidades no Mississipi?
         - Isso é uma droga, esses estados já foram castigados pra caramba, mas seguem se levantando. Parecem até a gente. - falou dando um grande gole da cerveja.
           - HAHAHA!!! - dei uma risada sonora e concordei coma cabeça - De fato, parece mesmo com a gente.
            A estrada se amansa um pouco no próximo trecho e nós conseguimos cruzar uns sessenta quilômetros em trinta e nove minutos cronometrados por um Sam meio bêbado, mas ainda confiável. Era um novo recorde para mim. Paramos para tirar água do joelho perto de uma pequena entrada de propriedade. Havia luzes longe, mas não podíamos ver exatamente a distância exata. Foi um momento meio catártico mijar no escuro total enquanto ouvia ao longe no som do carro o grande BB King tirando as primeiras notas de “How Blue Can You Get”.
            Logo estávamos prontos para seguir viagem, mas antes abri uma garrafa para mim. Bebi rápido o suficiente a metade dela e a coloquei bem segura na parte interna da porta do lado do motorista de modo que poderia usar minhas duas mãos para guiar e eventualmente poderia alcançar ela para um gole que molhasse a garganta.
            - Cara, imagina essas pessoas dessa fazenda. Morando aqui, no meio do absolutamente nada, sem acesso a maioria das coisas que todo mundo tem na cidade. Não consigo deixar de pensar que são mais felizes. Que podem curtir alguns momentos de conversa boa em família antes de dormir. Ouvir uma boa música no rádio. Cara isso é puro, não tem preço. É como uma oração simples. É como tomar água direto da nascente. - comecei a falar sem parar.
          - Concordo. Mas nosso tempo de pureza já se foi, o máximo que podemos fazer hoje é meditar e acreditar que isso vai nos deixar um pouco mais limpos no final do dia. Nossas orações simples não funcionam mais, nossa nascente já secou ou foi poluída. - respondeu Sam com seriedade.
         - Uma oração simples sempre funciona, cara. Ao menos se for verdadeira. - retruquei como que contrariado.
            - Se gosta de acreditar nisso, faça o que é melhor pra você. - Sam completou e deu mais um gole na cerveja.
            “The Clock” com Johnny Ace toca no rádio e eu então dou uma batida no volante, um gole na cerveja e digo:
            - Caramba!!! Isso sim é uma música de amor. Ele interpreta tão bem, e a letra, ahhh a letra, é poesia pura cara. Aquele cara e aquele relógio, esperando o amor da vida voltar. Com aquela certeza de que vão ficar ali sozinhos pra sempre caso isso não aconteça.
            - Acontece as vezes. - respondeu Sam - Já aconteceu comigo, e com você umas boas vezes. Nem preciso começar a citar nomes, preciso?
            - De jeito nenhum, por acaso está vendo algum relógio de parede por aqui hoje? - respondi dando uma gargalhada.
           Sam sorriu também e continuamos acelerando indefinidamente naquela estrada. Sean roncava sonoramente no banco traseiro enrolado em uma velha manta que carregava para todos os lados quando viajávamos durante a noite. E com isso as horas iam se passando e íamos trocando idéias e histórias. Nossas conversas dificilmente duravam mais do que duas ou três trocas de frases, e então o ar era preenchido por uma bela música interpretada por algum artista incrível. Espalhávamos o blues pelos campos do interior, criávamos som onde este não costumava chegar quase nunca. Sentíamos ao mesmo tempo uma pena enorme e uma inveja ainda maior daquelas pessoas que se encontravam ali nos confins da civilização. Quando os primeiros raios já despontavam atrás de nós o carro ainda balançava no ritmo da música e víamos pessoas acordando cedo para ir aos seus empregos ou coisas do gênero. Todos com suas coisas para fazer enquanto nós só queríamos aproveitas alguns dias sem fazer nada a não ser curtir uma boa música em meio à boa companhia.
            Nos aproximamos do nosso destino aproximadamente as 6:30 da manhã. O sol era quente já e pudemos ver os primeiros indícios de prédios mais altos e de uma cidade grande. Conferimos o endereço que nos fora dado e rumamos em direção ao hotel para um descanso merecido. Sean já estava acordado e bicava sua garrafa de whisky da mesma forma que um passarinho toma água aos poucos cedo da manhã. Eu precisava urgentemente de um travesseiro e umas nove horas de sonos ininterrupto.
            Demos o “check-in” no hotel e então fomos para o quarto. Me atirei direto no sofá enquanto Sam e Sean foram para as camas que se encontravam em um canto, separadas com por uma cômoda com um telefone antigo e vermelho. Deitei olhando para o teto e me revirei um pouco sem conseguir pregar o olho. Aparentemente Sam tinha o mesmo problema. Sean já roncava sonoramente em sua cama no canto do quarto, alheio ao resto do mundo. Sam quebrou o silêncio:
            - Não consigo parar de pensar nela, não consigo parar de crer que aquilo que aconteceu é raro e dificilmente vai acontecer de novo. Parece que não dei o devido valor quando devia.
            - Nunca damos eu acho. - disse eu quase automaticamente - Entendo como se sente, é por isso que resolvemos fazer essa viagem não, é? Para deixar que o blues nos contagie, para sermos “levados pelos blues” para longe como diria a canção.
            - É... mas as vezes, só as vezes eu queria dormir com a traquilidade com que o Sean dorme. Caaaara, ele parece inabalável. - comentou Sam.
          - E ele é. É simplesmente o cara mais feliz que conheço. Absolutamente não deixa o cérebro parar nunca, é como estar ligado constantemente no turbo, é como estar de trago vinte e quatro horas por dia. O Sean não é desse mundo, definitivamente.
          Sam então virou para o outro lado e comentou como que querendo terminar o assunto – Acho melhor tentarmos dormir, a noite vai ser longa e provavelmente boa.
            - Certo. - concordei ainda olhando para o teto do apartamento.
       A luz entrava insistentemente pela janela, mesmo com a cortina completamente fechada. Eu pensava naquela voz meio rouca, sonora e bela que não saía da minha cabeça. Lembrava dos movimentos daquele corpo meio desengonçado pela quantidade de álcool ingerido. Daqueles olhos borrados com o lápis escuro no outro dia pela manhã. Eu pensava e aos poucos meus olhos foram se entregando completamente. Gostaria de dormir como Sean, sem pensar, e acordar só à noite, sem me olhar no espelho para questionar absolutamente nada. Seria uma boa noite de fato, por isso o blues é tão belo, porque junta nossa tristeza e transforma em algo criativo, sonoro e belo. Gosto dele, costuma me inspirar. Gosto de escrever como um blues, como se a beleza de seu som, como se a tristeza de suas idéias marcasse as páginas. A noite seria “azul”, e a lua iria estar presente enquanto velhos lobos uivavam, para que as pessoas lá no interior ouvissem e se perguntassem se uivam por felicidade ou por dor.

Nenhum comentário: