Foi em 1903 que Lorde Wellington
pisou pela primeira vez no Brasil, a cidade fervia com a explosão cultural da
“belle époque” tupiniquim, dessa forma atraía pessoas de todas as partes do
mundo, fosse para passeio ou moradia final. Sua vinda para terras ao oeste do
Atlântico se deu por pedido de um grande amigo que fez durante a década de
1880, enquanto estudava na França. Foi nesta feita que conheceu o engenheiro
brasileiro Francisco Pereira Passos. Os dois se tornaram bons amigos
rapidamente, para Pereira Passos aquele homem era um exemplo de civilidade e
elegância, assim sendo, não foi surpresa nenhuma quando, durante o início de
seu mandato como prefeito da cidade um convite foi enviado ao Lorde para que
viesse ao Brasil prestar auxílio durante as grandes reformas urbanas planejadas
para a cidade.
Como moradia recebeu uma casa no
centro da cidade, que passava por uma verdadeira revolução, com a destruição de
diversas moradias e mudança de uma classe baixa que migrava para os subúrbios.
O ambiente era espaçoso, e eram raras as noites em que não havia alguma
atividade na casa do dândi. O bom gosto dele era absolutamente encantador para
uma nobreza presente na cidade que rodeava a propriedade como mariposas
atraídas pela clareza do fogo durante as noites.
Pequenos recitais, sarais poéticos
até altas horas da madrugada, jantares com os mais sortidos pratos. A casa
exalava cultura e beleza por todos os seus cômodos, pessoalmente decorados pelo
proprietário. Lorde Wellington era o perfeito exemplo de um homem que não havia
nascido na nobreza, mas soube se educar e buscar as melhores possibilidades de
se tornar um exemplo. Durante todos os seus anos em terras brasileiras sempre
foi possível ouvir as belas sinfonias que fugiam das grandes janelas abertas ao
se passar na frente da propriedade. O cheiro de pratos magníficos escapando
pelas frestas e polvilhando a calçada deixavam os transeuntes extremamente
extasiados.
Durante as duas décadas aquele foi
um lugar em que a cultura praticamente se materializava, e tinha seu avatar no
grande Lorde Duncan Wellington.
***
Os anos foram se passando e a
propriedade começou a passar pelas mãos de algumas gerações da família, até que
foi desapropriada e, eventualmente, ficou abandonada totalmente. Após mais
alguns anos ela foi adquirida por um homem de negócios em uma aposta de jogo,
sem valor nenhum atual, como um enorme fantasma em meio à cidade, a casa foi
mantida no estado que estava e colocada à venda por um preço relativamente
baixo dado seu tamanho. Compreensível, ainda assim, já que boa parte dela se
encontrava muito mal conservada.
Foi então que, por um acaso do
destino, a família Gomes comprou a propriedade e se instalou finalmente na casa
nova. Uma família absolutamente comum, com os gostos dos mais populares, mostrou
àqueles velhos cômodos e corredores o que era a música popular, desde o pagode
adorado pelo chefe da família, o senhor Adriano Gomes, até o mais puro funk
carioca que passava tocando no quarto de sua filha. A cozinha acostumada aos
mais variados pratos direto da culinária europeia sentiu pela primeira vez o
cheiro de uma feijoada bem brasileira, além é claro da dobradinha famosa da
Dona Santana Gomes. Algumas garrafas de vinho da antiga adega do Lorde
Weliington ainda se encontravam vivas. Nem foram tocadas pela família gomes,
apenas começaram a fazer companhia à semanal garrafa de Velho Barreiro que
temperava a caipirinha durante os ótimos churrascos do fim de semana.
O primeiro mês da família Gomes
naquela nova casa foi de adaptação, tanto da família, modificando o lugar para
que se adaptasse à sua forma de vida, quanto daquela casa que, quase como um
ser vivo, via seus modos e costumes tão fortemente modificados. Foi por volta
da quinta semana que então o trabalho de Lorde Wellington começou a se mostrar
para os novos habitantes. Durante um churrasco em que estava presente apenas a
família, enquanto rolava caipirinha, salsichão e um bom pagode no rádio,
algumas poucas interferências puderam ser notadas. Em um estrondo de volume, a
máquina, como se possuída, começou a tocar aos berros a 5º sinfonia de
Beethoveen. Algumas partes da 9º sinfonia do mesmo autor podiam ser ouvidas na
mistura de sons, que vieram a se dissipar com o quarto movimento da 1º sinfonia
de Brahms. A família acompanhou àquele “ataque sonoro” absolutamente
embasbacada, sem reação alguma. Era algo absolutamente inesperado, porém,
qualquer um que conhecesse o finado Lorde Wellington, saberia que ali naqueles
sons estavam representadas suas três sinfonias preferidas, criadas por seus dois
mais amados compositores.
Passado a acontecimento do som, os
ataques fantasmagóricos seguiram acontecendo. O mais grave deles ocorreu na
manhã em que a família foi acordada, as 5 horas, por um grito de terror vindo
do quarto de Janaína Gomes. Seu MP3 player surgiu esmagado no tapete,
completamente quebrado, localizado ao lado de um busto de mármore do Lorde
Wellington que havia ficado guardado no porão da casa. Após isso as
manifestações de poltergeist começaram a ficar mais comuns, culminando quando
Dona Santana foi atacada por uma cópia de A Volta do Parafuso de Henri James
enquanto ela lia sua edição da revista Diário da TV e descobria afinal com quem
Luiz Ricardo iria se casar no final da novela. Além de Henry James ser um dos
favoritos de Lorde Wellington havia o fato dessa obra em específico tratar
sobre a presença de seres do mundo espiritual em uma propriedade.
O caçula da família, Victor Gomes,
não passou despercebido pelo fantasma de Lorde Wellington, e teve seu vídeo
game queimado durante um pico de energia. Durante a falta de luz o garoto ainda
torceu o pé ao tropeçar em um antigo tabuleiro de xadrez de mármore, que também
deveria estar no porão.
Mais um mês se passou e cada vez
mais a família era atacada pelas manifestações culturais de Lorde Wellington.
Dois meses depois todos já tinham claro em suas cabeças que havia uma
assombração no local, e que ela se intensificava em momentos específicos. Nos
churrascos com pagode do fim de semana, durante as tardes de funk a todo volume
no quarto de Janaína, e, principalmente, durante a novela das 21h da Globo.
Houve então uma feita em que o
Senhor Adriano resolveu mexer com mais afinco nas coisas guardadas no porão.
Descobriu um antigo gramofone com alguns discos. Naquela noite trocou seus
planos e ouviu calmamente aquelas melodias por horas. Pela primeira vez em
semanas a família teve uma noite sem nenhum incidente sobrenatural.
***
Com o tempo, os costumes daquela
família foram mudando, se adaptando às investidas culturais do fantasma de
Lorde Duncan. Adriano Gomes não mais assistia seu futebol aos domingos, ao
invés disso geralmente gastava algumas horas assistindo às partidas de pólo,
esporte que começou a entender e venerar. Aprendeu a gostar de música clássica,
principalmente as sinfonias. Comentava muito durante os almoços de
domingo sobre sua nova paixão ao ouvir alguns dos concertos do romantismo do século
XIX. E foi devido a um documentário sobre música barroca que o pai da família
pode ver pela primeira vez a aparência física do fantasma. Ali estava, sentado
no sofá em frente a uma televisão, o poltergeist maravilhado pela visão do
quanto aquela caixa mágica do início do século XX havia evoluído
tecnologicamente. Após esse encontro é dito que o Sr. Adriano passou muitas
vezes a ostentar uma bela bengala com castão na forma da figura de um cavalo.
Usava ela em suas caminhadas de domingo, quando ia ao parque e fumava alguns
charutos assistindo o festival de flores e pássaros.
Dona Santana e o caçula, Victor
Gomes, também não passaram alheios à influência de Lorde Wellington, adquiriram
um gosto refinado pelo melhor da culinária europeia, e eram capazes de
transformar qualquer combinação de ingredientes em um belo prato. Janaína, por
sua vez, passava dias e dias trancada no quarto devorando livros, dando ênfase
naqueles por quem nutria uma grande estima, como Oscar Wilde e Henry James.
Assim foi que o tempo passou e
aquela família foi mudando e mudando cada vez mais. Os Gomes não mais pareciam
uma família do século XXI. À mudança nos gostos e costumes se seguiu uma
mudança muito grande no comportamento e até na autoestima daquelas pessoas.
Acabaram cortando relações com praticamente todos seus amigos, e até mesmo
familiares viam com maus olhos toda aquela “excentricidade”. Dois anos se
passaram com a rapidez na qual uma vela se apaga em meio à ventania. E assim,
eventualmente, a família Gomes acabou se mudando daquele local. Pouco se soube
deles depois disso, alguns vizinhos comentam que foram viver na Europa, em uma
propriedade de campo distante, onde muitos ainda mantinham aqueles maneirismos,
outros, mais ácidos, se referiam aos “chatos e metidos Gomes”, e afirmavam com
certeza que tinham ficado pobres e estavam agora vivendo às custas de um tio
que ainda tinha algum dinheiro. A verdade é que a mudança para uma "cultura melhor" talvez não tenha acarretado uma verdadeira melhora nos seus alvos. O próprio conceito de cultura melhor e única já parecia tão ultrapassado quanto o fantasma que o pregava.
O que se sabe é que a propriedade novamente caiu em desuso. O
tempo passava e as pessoas se acostumaram novamente ao aspecto desolado e
triste daquela casa. Muitos rumores ainda existiam no bairro sobre sons
estranhos vindos de dentro daquelas paredes, gemidos de tristeza e em alguns
momentos um ou outro barulho de passos entre o portão e a porta da sala.
Algumas crianças até afirmaram terem sido atingidas por pequenas pedrinhas
quando tentaram invadir o terreno por curiosidade. Outros afirmavam ver vultos
nas janelas, de um homem velho e com barba extremamente branca e encorpada,
exatamente como Lorde Wellington aparecia nas fotos. As histórias iam se
repetindo de boca em boca, mas o ocorrido mais estranho é o de que em certos
domingos, bem por volta da hora do futebol, haviam aqueles que juravam ouvir
bem de longe, como se trazido pelo vento lá dos fundos do terreno, um bom
pagode embalando as narrações dos jogos do Mengão. É, talvez não tenha sido só
a família Gomes que adquiriu novos costumes com aquela convivência tão estranha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário