As Montanhas Bitteroot ficavam
acessíveis através da rota 90, que cortava o estado de Montana. O mês de julho possuía
temperaturas boas devido ao terreno árido e as altitudes da região. Seco e
quente, lembrava até mesmo as diversas viagens atravessando o deserto de Nevada
que aquele grupo de amigos já havia feito. Sean mantinha a dianteira, cruzando
a mais de 90km por hora a rodovia com o destino já em sua memória, no carro de
trás iam Miranda e Lee, que traziam no banco traseiro Penny, a Golden retriever
do amigo Paul, que, devido aos grandes compromissos não pode estar presente
nessa empreitada do grupo. No último carro do ‘comboio’ iam James, Sam e
Evelyn.
Velhos companheiros de viagens e de
loucuras pela vastidão do país e do continente. Fazia 21ºC e ventava pouco,
mesmo assim um vento quente, abafado, que fazia com que o melhor lugar para se
estar no momento fosse a sombra de uma das incontáveis coníferas que sapecavam
toda a região montanhosa. Já haviam saído há aproximadamente uma hora da cidade
grande mais próxima, Helena, capital do estado de Montana, e agora se
aproximavam cada vez mais de seu objetivo. Um terreno de aproximadamente 5
acres onde pretendiam montar uma cabana e passar o próximo ano inteiro, vivendo
em conjunto uns com os outros. Era quase como a experiência de Black Bear que
James e Miranda já haviam participado, mas dessa vez apenas entre amigos e
também não pretendiam viver a vida dura apenas da terra.
O local havia sido escolhido já
adiantado, por James e Sean em uma de suas passadas pela região. Poucas pessoas
por perto, mas ainda assim a proximidade de uma cidade grande. Sean comprou o
terreno, e teve a ideia juntamente com James durante uma noite de Jazz e Uísque
em um bar na rota 90. Precisavam agora apenas chegar, desembarcar os primeiros
mantimentos e barracas, e começar a buscar as primeiras toras para o início do
trabalho.
A montanha Bitterroot fazia parte de
uma cadeia gigantesca que seguia através das rochosas e ia parar apenas no
Alaska. Era um local bonito, a paisagem era extremamente agradável, a vida
selvagem era farta mas não necessariamente perigosa e o clima contribuía com
pouca precipitação e nevascas que não eram tão fortes. Além do mais, quando
pronta, a cabana serviria como boa proteção contra as intempéries do inverno. O
mês de julho fora escolhido por essa razão. Clima bom de verão para o trabalho
inicial na cabine e também para todos irem se acostumando gradualmente à ideia,
até que chegasse dezembro com suas temperaturas abaixo de zero e suas neves.
***
Algumas horas após o desembarque, o
terreno estava sendo limpo por Evelyn e Miranda, Sam cuidava de uma pequena
horta que seria seu passatempo durante boa parte da estadia no local, Lee fora
encarregado de montar o acampamento e juntar madeira pra o fogo das primeiras
noites, por fim, James e Sean se juntavam com machados e serrotes no trabalho
de juntar o maior número de troncos durante aquele primeiro dia.
Sean marchava na frente, com botas
pretas, calça marrom, uma camisa xadrez de lenhador e uma touca verde, era a
imagem do trabalhador das montanhas, fumava um cigarro e esbravejava sobre o
quão bonita ficaria a cabana depois de pronta.
- Cara, essa cabana vai ficar
demais, DEMAIS! Não vejo a hora de passar noites e noites curtindo o melhor uísque
que tiver enquanto me aconchego numa boa pele de urso na frente da lareira.
- É, e eu tenho uma coleção de
livros do Dostoiévski pra devorar só nos primeiros meses. Ainda não acredito
que o avô do Paul me mandou todas aquelas relíquias.
James deu uma respirada forte, o ar
das montanhas entrou em profusão em seus pulmões. O cheiro de terra era forte,
bem como o da resina dos pinheiros da volta. Se sentia bem ali, aconchegado,
sem necessidades.
- Cê perdeu o papo de um casal que a
gente viu quando tava comendo naquele restaurante no último posto da 90 lá
atrás. A mulher e o cara, provavelmente algum casal de classe média alta e com
filhos já criados em uma viagem por aí. Ela cheia de jóias e o cara um perfeito
almofadinha.
- Nossa, a nata da sociedade,
garanto que tavam comendo panquecas, tomando café e se achando belos viajantes.
- Nem sei, mas me prendeu foi o
assunto que eles travavam. Ou melhor, era quase um monólogo da mulher. Ela
falava sobre a filha, uma engenheira que tinha se mudado pelo visto e dizia pro
marido ‘Nossa, mas eu concordo com ela, algumas profissões realmente merecem
receber mais, como é que a nossa cidade pretende segurar os profissionais
pagando uma mixaria. Nessa outra cidade ela vai ganhar quatro vezes mais.’
- Caramba, quanto será que ela tava
falando?
- Ela comentou algo em torno de 4 ou
5 mil por semana, uma boa grana.
- Boa grana.
- Grana demais, e outra coisa, o que
diabos aquela velha sabe sobre alguns merecerem mais. Cacete, Sean, há anos
atrás um idiota de bigodinho começou uma guerra por achar que alguns merecem
mais que outros.
Sean deu uma enorme gargalhada –
CACETE, JAMIE! Cê acha que uma velinha de classe alta vai começar a Terceira
Guerra Mundial?
- Não é esse meu ponto, o que quero
dizer é esse tipo de gente idiota que ainda acredita em méritos maiores pra
posições melhores. Isso é pura babaquice, é manutenção de uma hegemonia tosca,
boçal.
- É claro que é meu velho, quando eu
não tô com vocês bebendo e mal vestido, quando eu entro de terno num escritório
com meu nome na porta, as pessoas me tratam como doutor e me pagam um horror de
dinheiro pra eu não fazer quase nada. Diabos, cara, tem colegas meus que
recebem horrores pra tirar criminosos de prisão e tudo fica tudo bem. Afinal, a
nossa profissão merece receber mais não é mesmo? – comentou brincando Sean.
- Isso me irrita, e a forma com que
aquela mulher falou aquilo me irritou mais ainda, não sei por que não me
intrometi. Queria ver a vida dela sem o cara que faz o cafezinho, ou melhor,
sem o cara que planta o café, sem os artistas que fazem música, teatro,
televisão. Queria ver a vida dela só com a bela filha engenheira que recebe 5
mil dólares por mês. Mas sem o lixeiro pra coletar toda a porcaria que ela deve
ingerir com essa grana. É uma bobagem, as pessoas inventam patamares de
evolução pra se acharem umas melhores que as outras, e no fim das contas aquela
mulher se esquece que se abrir o intestino dela, tem a mesma coisa que tem no
de todo mundo. Diabos, Sean, eu conheço pelo menos umas 20 ou 30 pessoas que
são dez vezes mais pobres que ela, mas que tem muito mais valor. Não consigo
deixar de pensar que muita gente nesse mundo é um desperdício enorme de
oxigênio.
- Com certeza cara, mas e o Paul
então, é um babaca por não querer vir. – comentou Sean, mudando um pouco o
assunto.
- Eu entendo o Paul, cara. Ele virou
mais um na multidão, mas tudo bem, ainda assim ter dinheiro ou não, não fizeram
ele pensar que é melhor do que ninguém. Ele continua o mesmo cara bom de
sempre, que valoriza todo mundo de forma igual, diabos, foi quase por isso que
a Estella deixou dele. Diabos, aquela velha é a Estella no futuro, amarga e se
achando melhor do que todos.
Sean deu uma risada. Os amigos
seguiram o trabalho por horas e horas, enquanto o sol permitia. Trazendo todas
as toras para perto do acampamento.
Já no fim da tarde, James fora o
último a tomar banho no chuveiro improvisado com lata, pregos e uma quantidade
grande de água do lago. Ao sair viu Sean bebendo com Lee na beira do lago, lá
no meio a canoa de Sam vagava lentamente enquanto ele esperava que algum peixe
fisgasse o anzol. Evelyn se encontrava perto do fogo lendo um livro e Mirando
havia decidido preparar alguma comida no fogareiro. Ali estavam eles,
diferentes em profissões, diferentes em aspirações, mas nenhum se achava melhor
do que ninguém. Nenhum achava que o fato de ter tido um pouco mais de
oportunidades dava a eles o direito de se tornarem seres humanos podres.
James
olhou rapidamente para o céu. As estrelas brilhavam em força máxima sem as
luzes da cidade para disputar seu brilho. James pensou que nada daquilo
importava. Queria pensar nos próximos doze meses ali. As pessoas podres como
aquele casal haviam ficado para trás, naquele restaurante do posto de gasolina,
eles que rolassem nas notas de dinheiro que tanto amavam. É isso mesmo, ‘dançem,
macacos, dançem’, sigam o ritmo imposto pelas notas e esqueçam o que vale de
verdade, façam apenas o que foram programados a fazer por pais mais idiotas do
que vocês mesmos. James ficaria ali, com os amigos, com o que importava. E
esse havia sido apenas o primeiro dia.
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