4 de novembro de 2012

Epílogo



            O sol era intenso no meio da manhã de uma quarta-feira. A pequena vila ao sul da França se mantinha calma, apenas alguns passantes se movimentavam languidamente pelas ruas em direção ao seu destino. O ônibus descarrega na rodoviária o número habitual de viajantes, dentre eles um casal bastante original. A mulher loira, por volta de 25 anos de idade, desce primeiro, olhando para os lados com uma curiosidade voraz. Logo atrás um jovem moreno, com uma barba rala que tenta, mas não consegue, lhe conferir mais idade. carrega uma mochila e um ar de complacência.
***
            No mesmo momento em que o ônibus estaciona na rodoviária, um homem na casa dos 65 anos de idade, apoiado em sua bengala com o castão adornado em prata. O homem possui uma barba mesclando o branco com resquícios do castanho claro dos cabelos. Usa calça e camisa brancas e, na cabeça, um chapéu panamá com uma fita bordô. Ele entra calmamente pela porta de madeira de lei de uma pequena livraria. Na vidraça ao lado pode-se ler o nome “Desolation Peak Librairie”.
***
            O homem tira um pouco de café da cafeteira e serve em uma xícara, logo após grita a plenos pulmões:
            - Isabelle voulez-vous un café?
            - Oui, ma chère! - responde a mulher
            Ele serve a segunda xícara de café e a leva para a mulher. É uma morena de olhos azuis. Não é necessariamente bela, possui um nariz aquilino e as expressões são bem marcadas. A idade também já lhe tira um pouco do esplendor, porém possui um sorriso gracioso além de lábios grossos que lhe dão um certo sex appeal.
            Ela se encontra arrumando alguns livros em meio às estantes espalhadas pelas paredes da biblioteca. Recebe a taça com um sorriso e o homem se dirige à sua escrivaninha que fica na parte dos fundos da loja. Alguns minutos se passam até que um casal entra pela porta fazendo soar o antigo sininho que sinaliza movimento.
            O mesmo casal que havia descido do ônibus mais cedo. James sentiu uma certa familiaridade na menina. Os traços lhe eram muito conhecidos. Os do garoto também, além dele portar um vozeirão que lhe era também muito caro. Ambos passaram alguns minutos olhando as prateleiras com livros quando por fim a garota foi em direção à James:
            - Então, ainda não me reconheceu?
            - Noto que me é familiar, mas meu passado hoje em dia já parece tão longe que realmente fico com medo de arriscar.
            - Nem mesmo se eu chamar o senhor de “tio Jamie”?
            O homem abriu a boca automaticamente e manteve o olhar fixo, assustado com a revelação que aos poucos fazia com que sua mente trabalhasse. Seria verdade? Depois de tantos anos, aquela menininha já era uma mulher. A garota apenas sorria enquanto James se levantava, ainda com as feições assustadas.
            - Não creio, é você? Minha princesa?
            - Sim, Tio Jamie, foi um sufoco achar o senhor por aqui. - disse ela com um sorriso no rosto enquanto abraçava o velho homem como nos velhos tempos.
            - Vejo que o senhor ainda deixa a barba como antigamente. - comenta a garota enquanto da um beijo na bochecha peluda do “tio”.
            James convida então Mary e o garoto para que se sentem, apresenta a eles Isabelle. Isabelle era o amor final da vida de James. A conhecera em Paris, logo após a chegada no velho continente. Não fora um amor comum, mas sim uma conexão ideológica a princípio. Uma união de forças e vontades. Com o passar dos tempos Isabelle se tornou confidente e cúmplice, companheira e sócia de James na nova vida. Talvez a primeira vida que aquele velho lobo tenha encontrado felicidade de fato. Foram para o sul do país onde abriram uma pequena livraria. Viviam de forma simples e feliz, bebendo vinho e lendo livros, conversando até tarde da noite e vendo a natureza florescer. Após contar essa pequena história James então começa com as perguntas:
            - Mas o que você faz aqui, Mary? Depois de tantos anos. E antes de mais nada, aceitam algo para beber? E o seu nome garoto? Não é o William com certeza, é muito diferente, mas me parece bastante familiar, como se eu conhecesse suas feições, sua voz.
            - Muitos dizem que me pareço bastante com meu  pai, e que minha gargalhada lembra muito a dele. - responde o garoto - E se o senhor tiver um bom uísque por aqui eu aceito.
            As sinapses no cérebro de James começaram então a fazer as ligações, era ele, mas mais jovem. A imagem era igual, porém tinha os olhos claros e a pele alva que não eram os de Sean. Mary então terminou com o mistério:
            - Tio Jamie, esse é o James. - comenta ela, com um risinho - Filho do seu velho amigo Sean e da tia Lucy.
            James novamente se assusta com a revelação, o garoto tinha seu nome, mas tinha todo o jeito de se mover e falar de Sean.
            - Muito prazer senhor James, meu pai e minha mãe sempre falaram muito do senhor. - diz o garoto esticando a mão para cumprimentar o velho.
            - Nossa, é realmente muita informação para tão pouco tempo. - comenta o velho apertando a mão do garoto – Vou buscar uma bebida para nós e já volto.
            James traz três copos, um deles com o uísque do jovem James e mais duas taças para que ele e Mary pudessem apreciar a bela garrafa de Chatêau Vaniàrres Rouge que ele trazia acompanhando. Isabelle seguia fazendo seu trabalho, tentando deixar a vontade tanto seu companheiro quanto as visitas.
            - Mas e o que traz vocês aqui afinal? - pergunta James, com a curiosidade aguçada.
            - Bom, eu vim pra acompanhar o James a principio e pra poder rever o senhor, sentia saudades. - responde Mary
            - E eu vim porque quero aprender a escrever com o senhor! – interrompe o jovem James, não segurando a ansiedade - Minha mãe sempre comentou que o senhor era um dos melhores, que poderia talvez ter sido o melhor.
            James soltou então um riso continuo - Talvez, nunca se sabe, mas há muito tempo que larguei os textos e me dedico apenas à leitura, é menos responsabilidade nas costas sabe?
            - Mas eu quero aprender mais, eu quero ser um dos melhores. Eu não tenho medo de arriscar! – exclama o jovem.
            - Gostei da sua audácia garoto, de fato tem muito de seu pai em você.
            - Preferiria que não, mas não consigo evitar que as pessoas nos comparem.
            - Mas por que não? - pergunta o velho.
            - Meu pai não foi bom nem pra mim nem pra minha mãe. Eles se separaram logo que nasci. Pelo que ouvi dizer, logo depois que o senhor foi embora do país. Minha convivência com ele acabou sendo pequena por isso. Eu e minha mãe voltamos para Nova York enquanto ele continuou no rancho.
            - Hmmm, não posso dizer que isso seja inesperado, considerado como o Sean sempre foi. Mas realmente achei que alguma hora ele fosse se aquietar.
            - Hoje em dia ele se aquietou, é velho e não tem mais nada na vida a não ser aquele rancho. Até comentou comigo que sente um pouco de culpa pelo senhor ter vindo para cá.
            - De forma alguma, meu rapaz. Não nego que talvez os acontecimentos do passado tenham acelerado minha viagem. Mas era fato que em algum momento eu ia precisar sair de lá e me buscar em outro lugar, em outras terras. Acho que esse velho lobo aqui precisava de novos ares, um ambiente diferente de caça e de vida.
            - Todos sentiram falta do senhor, tio Jamie. - comenta Mary, interrompendo a conversa.
            - E eu também senti falta de todos, mas com o tempo eu entendi que esse rompimento com o passado era algo necessária para mim. Caso eu continuasse por lá, talvez eu tivesse cada vez mais me tornado um “lobo da estepe” como diria Hermann Hesse.
            - Fico feliz que tenha encontrado uma boa vida aqui, tio Jamie.
            - Mas e vocês, como estão, e seus pais? O Sam, e o resto da turma?
            - Todos estão bem, mas separados pela distância. O tio Sean ficou no rancho. O Lee e a tia Miranda se mudaram e agora são donos de uma loja de discos. O Sam virou professor de música na costa oeste. Meu pai continua casado com a Nancy e eles tiveram um casal de gêmeos. O Will se mudou pra Austrália e trabalha por lá. Minha mãe casou pela terceira vez, e acho que ainda assim não vai durar. A tia Lucy voltou pra Nova York e trabalha por lá.
            - E você, querida?
            - Bom, eu e o James encontramos um no outro a nossa vida, agora pra onde um vai o outro vai também. - respondeu a garota com um sorriso plácido e feliz.
            - Fico contente que ao menos uma história feliz de amor tenha surgido dentre tantos desencontros no nosso grupo. Mas então, jovem James, pretende ser um escritor? E pretendem morar por aqui?
            - Sim senhor, vamos procurar algum lugar assim que o senhor aceitar me ensinar aquilo que sabe.
            - Mas é claro que ensino garoto, seria um prazer, espero ser um professor a altura de tão nobre aluno. Além disso, faço questão que se hospedem conosco enquanto estão por aqui. - respondeu o velho Jamie, com um sorriso no rosto.
            Assim é retomado o laço de James com seus velhos amigos de além mar. Seu velho grupo de lobos. De uma forma segura. Agora com uma nova vida, não queria correr riscos de se encontrar com velhos amores, dessa forma, a ligação dos mais jovens era a única possível de James manter com aqueles que outrora foram seus companheiros de uma vida. A ligação que lembrava a ele todos os dias a razão principal de sua saída daquele lugar, mas ao mesmo tempo dava a ele tanto orgulho por ver naquele garoto muito de si. Era notável nas ideias e na forma de agir que ele, apesar da semelhança externa com o pai, possuía muito da índole e do jeito de ser de Lucy, e mais notável ainda, com o passar do tempo e com as conversas que tinha com o menino, era o fato de que a mãe daquele garoto parecia ter ensinado muito a ele sobre o velho James. Como se o modelo a seguir devesse ser aquele homem que há tanto Lucy havia negado. Isso dava um certo orgulho a James, mexia na vaidade do velho homem, mas ao mesmo tempo não mexia na sua certeza do caminho tomado. Isabelle se acostumou com os jovens, como eles não haviam tido filhos, era interessante ver como aquela mulher tinha dentro de si um enorme espirito maternal.
            Assim terminam as histórias de Jamie e de todos os outros. Ele talvez tivesse tudo para não ter sido feliz, mas no fim das contas descobriu que, simplesmente, a felicidade pode ser mais questão de escolha do que de sorte. A felicidade plena em geral é apenas um oásis em meio a um deserto de verdades. Buscar perfeições e mágicas haviam dado a ele apenas uma porção de calos e lágrimas. A felicidade verdadeira, sofrida as vezes, mas verdadeira quase sempre, é que era palpável e simples. Sem sinais de viver feliz e muito menos para sempre, James seguia o caminho, finalmente sem tanto peso na consciência. A vida é assim as vezes, cheia de coincidências, cheia de encontros e desencontros. De dificuldades de comunicação, e, por mais que seja demasiada real, em certos momentos tem toques de romance, de drama, de literatura ficcional. Talvez a maior história que James pudesse contar, fosse essa, mas ele nunca teria a vaidade necessária para fazê-lo.  Que ficasse então nas mãos de um narrador qualquer, e do imaginário de um escritor qualquer, fosse ele profissional ou amador. Amador, bela palavra, no fim das contas os amadores podem ser aqueles que de fato AMAM aquilo que fazem.

18 de julho de 2012

“A beleza das coisas está no fato de terminarem.”



            Mais de um ano já havia se passado sem que James voltasse à cabana dos amigos. Muitas coisas haviam mudado, mas no geral sempre esperava encontrar Sean e Sam por lá. Talvez Estella aparecesse, ou Paul com a esposa no fim de semana. James sempre gostava das ocasiões em que podia estar junto dos filhos de Paul, já que aproveitava bastante da companhia das crianças.
            No ano que havia se passado James se dedicou mais e mais à escrita e acabou se isolando um pouco na cidade, em seu velho apartamento. A última visita à cabana havia sido no casamento de Miranda e Lee. Uma reunião simples entre amigos na qual James fez questão de estar presente a fim de parabenizar ambos. Lee se tornara um grande amigo e um grande mentor. Era um homem um pouco mais velho, com boa experiência de vida e uma paciência incrível para conversas longas. James e Sam o viam como um grande guru. Queria também participar desse momento com Miranda, com quem se relacionou por algum tempo e ainda mantinha um enorme afeto quase fraterno. Primeiramente a reunião dos amigos foi com uma pequena cerimonia que lembrava os costumes dos índios Lakota, dos quais Lee possui sangue. Após tudo aconteceu com maior descontração enquanto o casal conversava com os amigos tentando dar atenção a todos que estavam por lá. James e Sam gostaram muito das conversas. Nessa ocasião Evelyn não mais apareceu, como James imaginava que aconteceria. De fato ela havia ido embora de uma vez por todas. Dentre os amigos foi a única falta. Todos os outros estavam lá, Paul, Nancy, os filhos, Estella, e Lucy, que viera ficar mais um tempo na cabana. Parecia estar se acostumando com aquela vida e finalmente voltando a ser a Lucy dos velhos tempos. Isso fez com que uma grande felicidade somasse no interior de James.
            Agora, pouco mais de um ano mais tarde James estava de volta e esperava reencontrar os amigos. Logo de cara viu Sam em sua canoa, no meio do lago. Não fazia movimento algum, apenas segurava a vara de pescar e mantinha o dedo preso na linha à espera de algum movimento. Vendo o amigo concentrado, James deu um grito alto:
            – E aí, já pegou o suficiente para o almoço?!
            Sam pareceu despertar de súbito. Olhou em direção a beira d’água e abriu um grande sorriso. Assim fez o caminho remando de volta à margem.
            – Bom ver você meu amigo, quanto tempo. Como tem passado? – inquiriu Sam ao sair da canoa.
            – Vou bem, vou bem. Tentando escrever sempre mais. Estou com alguns planos de uma edição na Europa, só falta acertar tudo com meu agente de lá.
            – Bom saber, muito bom mesmo. E então já encontrou com o Sean ou a Lucy?
            – Ainda não, ela ainda está por aqui? Que maravilha!
            – Pois é. Mas é bom então que eu tenha encontrado você. Sabe, a Lucy tem cada vez mais se assemelhado àquela que conhecemos na faculdade. Voltou a passar muito tempo com o Sean, e consequentemente. Bem, eu sei sobre seus sentimentos fortes por ela, então acho que é bom que saiba já que eles estão juntos. Sabe, pra você não se assustar.
            James por alguns segundos, mas logo voltou à sua calma habitual. Aquilo não era algo pelo qual esperava, mas tudo bem, as coisas são assim na vida. Se lembrou então de uma passagem de um belo poema de Pablo Neruda, apenas recitou ele:

Si consideras largo y loco
el viento de banderas
que pasa por mi vida
y te decides
a dejarme a la orilla
del corazón en que tengo raíces,
piensa
que en ese día,
a esa hora
levantaré los brazos
y saldrán mis raíces
a buscar otra tierra.


              Sam abriu um sorriso largo e abraçou o amigo.

***
            A recepção por parte de Sean e Lucy fora igualmente amigável. Sorrisos, perguntas sobre a vida, uma surpresa um pouco fingida por parte de James e, por fim, um vácuo de ligação que fez com que ficassem alguns minutos quietos, apenas bicando o café quente das canecas em cima da mesa de madeira.
            Noite adentro mais pessoas surgiram e as conversas giraram. James encontrava-se deitado numa rede entre dois pinheiros ainda jovens que eram perfeitamente parelhos. Dava goles pequenos em seu chá enquanto vislumbrava a cena que ocorria de conversas, música, dança e inspiração. Lucy se aproximou silenciosamente, do jeito que sempre fizera, como uma loba branca que se camufla no gelo a fim de surpreender sua presa.
            – E então, estranho, quanto tempo na cidade grande.
            – Lucy in the sky, nem vi você  se aproximar.
            Lucy deu um sorriso largo e os olhos azuis brilharam à luz do fogo que queimava próximo – Que bom que voltou, pretende ficar quanto tempo?
            – Ainda não sei, talvez pouco, estou pensando na possibilidade de lançar algo no mercado europeu.
            – Nossa, que bom. Parece que as coisas se acertaram então?
            – É, acho que finalmente emplaquei algo, os editores daqui gostaram.
            Um silêncio curto se fez enquanto ambos olhavam um para o outro. James o quebrou:
            – Então, você e Sean.
            – Pois é, que doido não?
            – Talvez surpreendente, mas não doido. O Sempre teve jeito com o sexo feminino.
            – É, acho que me conquistou, não sei ainda como tudo se conformou. As vezes tenho medo que isso seja só escapismo sentimental, que eu tenha me apaixonado só pelo único cara que tinha junto de mim no momento.
            – É um risco que se corre sempre.
            – É. – respondeu ela laconicamente, mas logo emendou – Mas e você, nenhuma senhora Kindel esperando em Nova York?
            James apenas deu uma gargalhada. Desse modo descontraído a conversa continuou através da noite.
***
            No outro dia, antes mesmo que o sol tivesse chance de começar a esquentar o globo, James arrumou suas coisas e rumou para Nova York. Havia conseguido o que buscara por tanto tempo na cabana. Era hora de mudar algumas coisas. A viagem foi curta até sua casa. Em duas semanas havia acertado todos os detalhes com seu editor na Europa, era hora de partir, como fizera Evelyn há quase dois anos atrás. Parafraseando Kerouac, “A beleza das coisas está no fato de terminarem”. Uma hora o peão precisa parar de rodar.
            Não olhou para o que deixava, na verdade sentia que nada do que ficava era ou já havia sido seu. Nada nem ninguém. Era hora de trilhar novas estradas e traças novos caminhos.

João Carlos Radünz Neto - Porto Alegre, 18 de julho de 2012

19 de junho de 2012

O Longo Adeus ...

         
         A cabana havia ficado pronta há dois dias atrás. Tudo estava acertada para que pudesse ser devidamente inaugurada no fim de semana, com uma festa juntado todos os amigos. Paul viria com a esposa, Lucy também, além de Estella e as crianças.
            Os dias não demoraram a passar. E lá estava a enorme cabana pronta, com sala grande, cozinha apropriada, e quartos espaçosos para um bom número de pessoas. O campo em volta se via coberto por barracas das pessoas que haviam vindo para comemorar. Era incrível notar o quanto aquele grupo de amigos ainda era benquisto, mesmo que isolados ali. Entre as figuras estavam Greta, a ex-namorada de Sean, e até a família de mexicanos que cruzou o caminho dos amigos em uma antiga história. Miguel, Úrsula e a pequena Esperanza.
            As noites eram brindadas com reuniões, jantares, muita conversa, música, poesia. Aquela semana inteira estava sendo um bombardeiro de emoções alegres e fecundas. James e Sean se encontravam na varanda, o primeiro sentado no chão, com as costas em uma das vigas de sustentação do teto, o outro caminhava de um lado para outro pisando forte na madeira.
            – Cara isso é incrível! É pura poesia ver tantos amigos juntos. É como se a vida nos brindasse com o melhor dos vinhos e ao mesmo tempo eu não vejo nenhuma etiqueta de preço! – falou ele.
            – As vezes as coisas são assim, Sean, simplesmente acontecem, e a gente não tem que “a esmola é demais”. As vezes é só deixar rolar.
            Longe dali Esperanza brincava com Mary, William e Penny. Simplesmente corriam no campo com a cachorra em seu encalço, soltando risinhos que se dissipavam no sol da tarde de inverno. A beira do lago refletia suas silhuetas numa superfície inalterada. Lá no meio, solto ao acaso, se encontrava o barquinho de Sam. Este permanecia sentado em silencio e quase sem movimentos enquanto esperava que algum peixe da felicidade abocanhasse seu anzol.
            Miguel, Ursula e Lucy debatiam ali perto sobre as possibilidades de se aprender na vida com os pequenos acontecimentos. Pequenas supernovas de sabedoria que refletiam na vastidão do mundo. Era interessante ver Lucy se entregando um pouco à reflexão e não apenas aos sentidos rasos. Miranda e Lee tocavam e cantavam. Criavam músicas que se uniam ais risinhos, as reflexões, e no fim se tornavam quase preces indo de encontro ao céu. Evelyn tentava captar toda essa imagem em uma tela, ao lado de um enorme pinheiro que era como um mascote da casa. Na verdade um vigilante. Era antigo, e parecia conter nele toda calma e serenidade do mundo.
            A tela de Evellyn se encontrava ainda com poucos rabiscos, e a autora mantinha o cenho franzido enquanto se concentrava. Olhava para todos os lados, alimentando a captação dos seus sentidos com sons e imagens incessantes. Mas parecia que faltava algo, a tela simplesmente não se completava.
            O dia passou. O fim de semana também. Despedidas foram feitas e no fim das contas apenas o grupo original se manteve ainda ali, com promessas de novas semanas de festas e conversas. Passava das 21h e James se encontrava sozinho na sala da casa. Aparentemente todos os amigos já dormiam divididos nos quartos que haviam na cabana. As únicas luzes presentes na sala eram o luar que entrava tímido por uma janela e os restos de brasa da lareira que ainda emitiam um calor e uma luz alaranjada, bem como o aroma de pinheiro queimado.
            Houve um barulho na escada, Evelyn descia. Carregava consigo uma mala e parecia pronta para uma viagem.
            – Aí está você. Te procurei por todos quartos e não achava nunca.
            – Estava sem sono, acho que foi muita intensidade durante essa semana, ainda tenho energia demais em mim para conseguir descansar os olhos. Se não fosse o frio iria nadar no lago até meus braços não aguentarem mais.
            – Entendo, também senti essa vibração durante a semana, mas eu funciono de um jeito diferente. Meu sistema precisa de um certo alívio. A vida aqui é ótima mas...
            – Mas você não consegue ficar muito tempo no mesmo lugar não é mesmo?
            – Sou tão previsível assim?
            – Muito pelo contrário, mas em se tratando de assentar a vida, eu já imaginava que você não fosse aguentar muito tempo.
            – Preciso de coisas diferentes, Jamie. Toda essa estabilidade me assusta. É uma segurança insegura, da mesma forma que era quando a gente estava juntos.
            – Eu sei. E vai pra onde?
            – Europa talvez, quem sabe América do Sul, quero tentar algumas novas experiências.
            – Desejo sorte a você, Eve. E sabe o que mais, essa é a primeira vez que você vai dar uma das suas sumidas mas se despediu de mim.
            – Eu sei, sempre foi difícil me despedir de você, mas dessa vez eu sinto que finalmente é adeus de verdade.
            – Entendo... – James ficou algum tempo olhando para Evelyn, ela também o encarava nos olhos. Ambos pararam de falar por alguns minutos, ou horas, ou apenas alguns milésimos. O tempo perdeu um pouco suas características normais naquele momento.
            James voltou a quebrar o silencio – Desejo a você toda felicidade que esse mundo puder dar à alguém, Eve. Você é uma das pessoas mais incríveis que já conheci.
            Evelyn abriu um sorriso, era difícil arrancar sorrisos dela. James se aproximou, desejou com todas as células de seu corpo dar um último beijo nela, porém apenas a prendeu em seus braços e deu um abraço apertado.  Quando já estavam as vias de se separarem, levou os lábios delicadamente à testa de Evelyn ali plantou um beijo.
            Ela continuava sorrindo. Entregou para ela a tela que esteve pintando durante o fim de semana. Estava incompleta. Algumas cores faltavam, algumas linhas – Quero que fique com ela. Meu último trabalho aqui. Está incompleto, assim como muitas histórias em nossas vidas. Como já falei, preciso mudar os ares.
            James aceitou o presente da amiga – Então acho que é adeus.
            – É provável.
            James abriu a porta, a amiga saiu com a mala, caminhou em direção ao Corvette 61. O mesmo que ela usou há eras atrás para sair da cidadezinha rural onde morava. Os sorrisos nos rostos dos dois traduziam o momento que se enchia de um perfume característico de velhas histórias.
            Evelyn subiu a estrada em direção ao mundo. James carregou a tela para seu quarto e a guardou em um baú. Por enquanto não seria exposta. Quem sabe ainda pudesse ser acabada. Era essa sua esperança, apesar de saber. Saber que essa despedida era apenas o final de um longo adeus, que começou desde o momento em que Evelyn deixou seu telefone no caderno de poesias de James. Saber que certas histórias, por mais que teimemos, são apenas longos adeuses que começam e terminam numa troca de sorrisos, as faces riem, mesmo que o coração suspire e se dobre de dor.

17 de maio de 2012

Natureza Humana ...

 
            A cabana recebia já os retoques finais em seu alicerce. Em pouco tempo as paredes começariam a ser erguidas. O trabalho no alicerce com tábuas retas havia sido muito bom e, relativamente, rápido. Era noite e um vento fresco cortava as matas enquanto o fogo crepitava com fúria no meio da roda de amigos.
            Todos estavam ali ao redor da fogueira com exceção de Sean que roncava sonoramente, deitado em cima de sua capa de lã, com Penny ao seu lado, também dormindo.
            Conversavam sobre a vida em geral, mais precisamente sobre a natureza humana, em alguns minutos de discussão alguém comentou algo sobre a naturalidade com que algumas pessoas agem. E Evelyn disse:
            – O Sean as vezes me espanta, nunca sei o quanto dele é naturalmente loucura ou simplesmente necessidade se ser excêntrico. Afinal, o que move ele?
            James a fitou de forma pausada e respondeu – Bom cê trazer esse exemplo, Eve. O Sean é pura emoção, tem um coração do tamanho desse mundo, e é movido por ele. Acho que uma história da nossa época de faculdade pode exemplificar bem a situação. Se vocês permitirem.
            Após a aprovação dos amigos, James começou sua narrativa:
***
            Era 1986, Sean, James e Samuel terminavam seu primeiro ano de faculdade. Numa sexta a noite qualquer eles se encontravam em um desses bares universitários clássicos onde a cerveja é barata e a música em geral é desconhecida. Naquela noite Samuel tocava com sua banda e os dois amigos resolveram dar uma força para deixar o local mais cheio. Independente da tentativa a maioria das pessoas focavam em suas rodas de conversa ou nas tentativas dos homens de arranjarem alguém naquela noite. Sean e James, por sua vez se encontravam ao lado de uma mesa se sinuca, onde quatro caras jogavam, dois deles eram os universitários comuns do sul, com a cabeça já cheia de cerveja, formavam frases meio bobas e riam de piadas sem nexo. Um deles era um gigante de quase dois metros que podia muito bem ser um titular da linha de defesa de algum time de futebol universitário, falava bastante e ria pouco, gracejando quando alguma garota passava e comemorando efusivamente cada vez que encaçapava alguma bolinha. O último era o típico número dois, um puxa saco do gigante, ria de suas piadas e admirava suas tacadas como se fosse um verdadeiro profissional.
            Sean cutucou James na costela e comentou:
            - E aí, parceiro, tá a fim de faturar uma grana?
            – Ah não, de novo não, Sean. Lembra de como foi na última vez? – reclamou James, fazendo que não com a cabeça.
            Da última vez que tinham jogado por dinheiro tiveram que sair correndo do bar com um bando de motoqueiros atrás deles por conta das apostas e da boca grande de Sean. Também foi um problema o fato deles terem enganado os tais motoqueiros com o intuito de ganhar a grana.
            – Relaxa, dessa vez vai ser diferente, tirando o gigante ali os outros são universitários comuns. E vê se não esquece do nosso esquema. – comentou ele com um ar de tranquilidade que só ele conseguia ter nessas horas.
            Sean caminhou até a mesa e, abrindo um enorme sorriso largou:
            – Amigos, que dizem de uma apostinha amigável?
            O gigante olhou para ele com o cenho franzido e respondeu de forma solene – Quanto?
            – Vinte e cinco num jogo de duplas, eu e o meu amigo Jamie aqui contra seus dois melhores.
            – Feito! – disse o gigante, colocando suas notas em cima da mesa onde estavam suas garrafas de cerveja.
            O jogo correu de forma rápida, o gigante era um jogador de nível regular para bom, seu companheiro bajulador era um bom jogador também. James acertava algumas e errava outras, reclamando solenemente a cada erro. Sean errava a maioria das tacadas deliberadamente, reclamando alto, segurava o taco de forma desleixada e dava a impressão de ter bebido mais do que devia para apostar dinheiro no jogo.
            O gigante dava uma risadinha de canto a cada erro por parte dos adversários e provavelmente pensava que aquela seria a grana mais fácil que já havia conseguido na sinuca.
            Assim a partida terminou, e o gigante pegou os cem dólares com gosto, mas quando estava pronto para colocar o dinheiro na carteira Sean trovejou:
            – O dobro ou nada!
            – Tem certeza, amigo? – inquiriu ele, já com o sorriso voltando aos lábios.
            – É claro, na próxima a gente leva! – gritou Sean, enquanto colocava giz na ponta do seu taco.
            O segundo jogo foi ainda pior do que o primeiro. O gigante dominou quase do início ao fim, enquanto Sean e James pediam mais e mais cervejas.
            O gigante novamente admirou sua quantia de dinheiro, e antes de guardar Sean voltou a pular na frente:
            – OK! Setenta e cinco dólares de cada dupla e a gente fecha a bolsa em cento e cinquenta pros vencedores.
            O gigante deu uma grande gargalhada – Se continuar desse jeito vocês vão acabar me sustentando por todo esse mês na faculdade. Feito!
            Dessa vez o jogo foi diferente. Sean franziu o cenho, e sem passar a vez encaçapou todas as bolas listradas e a oito, em alguns minutos.
            – NOSSA! Acho que dessa vez dei sorte, hã amigos! Os deuses da sinuca devem estar do nosso lado no fim das contas. – falou ele enquanto ia em direção à mesa com o dinheiro.
            O gigante entrou em seu caminho, estalando os dedos:
            – Cara, nos enganar desse jeito, não foi legal. – comentou enquanto o puxa saco ia para o seu lado e os outros dois chegavam pelo outro lado da mesa perto de James.
            – Como assim enganar? – perguntou Sean enquanto dava alguns passos para trás em direção à mesa – Foi pura sorte, não é mesmo James? – perguntou ele enquanto se virava para o amigo e ficava de costas para o gigante.
            Sean era um cara grande, 1,88cm de altura e 105kg. Tinha o porte de um linebacker, posição na qual jogava. Mesmo assim ele ficava pequeno perto do gigante de quase dois metros. James por sua vez era um cara de estatura média, 1,75cm e relativamente magro. Via-se encurralado pela dupla de bêbados no outro extremo da mesa.
            A ação se deu em um piscar de olhos, Sean pegou o taco que estava em cima da mesa e se virou colocando toda a força no quadril e na pancada. O taco se quebrou direto no lado esquerdo do rosto do gigante. Antes que este pudesse se recuperar Sean já estava em cima dele, como um enorme touro branco, cabeça baixa e ombro nas costelas. Como costumava fazer com os running backs do time adversário no campo de futebol. Levantou o gigante do chão e só foi parar quando a lombar do outro se chocou contra o balcão que ficava há uns três metros de distância. O gigante soltou um urro de dor e caiu enquanto tinha espasmos de dor por todas suas costas. Sean sentiu então a pancada de uma cadeira nas suas costas. O puxa saco achou que essa arma seria suficiente para parar o touro na sua frente. Sean se virou, pegou ele pelo colarinho e fez ele aterrissar de cabeça em cima do gigante. Chutou as costelas de ambos no chão e, quando sendo sentiu que estavam derrotados se virou para ver o que havia acontecido com James.
            Do outro lado da mesa, James havia dado alguns passos atrás após Sean quebrar o taco na cara do gigante, levantou as mãos em sinal de paz e disse para a dupla de bêbados:
            – Hey caras, não quero confusão não.
            No segundo em que os dois bêbados se olharam, como se decidindo em conjunto o que fazer com aquele pacifista medroso, James disparou um direto, bem no queixo do bêbado da esquerda. CRACK! O barulho foi audível, só não se sabia ao certo se havia sido a mandíbula do bêbado ou a mão de James.
            O bêbado caiu pra trás berrando de dor com a mandíbula deslocada. James cambaleou também enquanto segurava o braço esquerdo e balançava a mão esbravejando de dor. Aparentemente, seu soco havia feito tanto dano nele quanto na sua vítima. O bêbado da direita, após o susto do golpe, foi em direção a James e lhe aplicou um soco direto no nariz, que o derrubou em direção à parede. Um segundo depois estava em cima de James e lhe aplicava mais um soco direto no nariz. O sangue já jorrava em profusão e quando James esperava por um terceiro golpe, de olhos fechados, ouviu apenas um enorme CRACK! E o bêbado caiu para o lado com um baque surdo.
            Samuel se encontrava ali parado de pé, magro e alto, com o violão pendendo de sua mão direita, quebrado após o choque com a cabeça do bêbado.
            Sean viu essa cena ao se virar. Deu uma enorme gargalhada e foi em direção aos amigos – Bela briga, hein amigos.
            – “DESSA VEZ VAI SER DIFERENTE!” – exclamou James, enquanto saiam do bar em direção a algum ambulatório para concertar seu nariz – E VOCÊ NEM PRECISAVA DA PORCARIA DO DINHEIRO! – o pai de Sean era um fazendeiro abastado do sul, de modo que o mesmo nunca havia tido problemas com dinheiro durante sua criação.
            – Calma, parceiro. Em nenhum momento isso foi por causa do dinheiro. – comentou Sean enquanto sorria para o amigo.
            Enquanto os amigos entravam no carro de Sean no estacionamento do bar, os cento e cinquenta dólares continuavam ali em cima da mesa com as garrafas de cerveja.
***
            – E esse é o Sean. Ele não faz as coisas pelas razões comuns. Ele gosta é do estrago. – comentou James e fez uma pausa para tomar um gole de vodka – É o verdadeiro cientista humano, sempre fazendo seus experimentos. E naquele dia eu acabei fazendo parte da verificação empírica dele. Meu nariz que o diga.
            Evelyn riu, e os demais acompanharam em uma gargalhada conjunta.
            Enquanto James dava as últimas explicações sobre a natureza do amigo, Sean soltou um enorme ronco e virou de barriga para cima embaixo de suas cobertas. Dormia em paz, como se fosse a criatura mais inocente do mundo, e de certa forma o era. Era sincero a si mesmo, e nunca soubera “medir nem tempo e nem medo”.
            – Não acredito em natureza humana. Só acho que o Sean é o cara mais sincero consigo que existe, Ele entra em um estado em que ele desliga a mente e se torna aberto para tudo.
            Todos foram deitar após a história, com exceção de James. Ele ficou para trás e brindou silenciosamente em frente à fogueira. Tomou o último gole de seu copo de vodka, apagou o fogo e quando estava caminhando para sua barraca ouviu Sean acordando. Ele deu um grande bocejo e disse:
            – Cara, tive uma grande ideia. Que tal a gente pegar o carro amanha e ir até a cidade em algum bar. Tomamos umas cervejas e quem sabe até jogamos uma sinuca.
            James deu uma risada baixa e então respondeu – É, quem sabe, Sean. Quem sabe...

6 de maio de 2012

E quanto vale cada um ???



            As Montanhas Bitteroot ficavam acessíveis através da rota 90, que cortava o estado de Montana. O mês de julho possuía temperaturas boas devido ao terreno árido e as altitudes da região. Seco e quente, lembrava até mesmo as diversas viagens atravessando o deserto de Nevada que aquele grupo de amigos já havia feito. Sean mantinha a dianteira, cruzando a mais de 90km por hora a rodovia com o destino já em sua memória, no carro de trás iam Miranda e Lee, que traziam no banco traseiro Penny, a Golden retriever do amigo Paul, que, devido aos grandes compromissos não pode estar presente nessa empreitada do grupo. No último carro do ‘comboio’ iam James, Sam e Evelyn.
            Velhos companheiros de viagens e de loucuras pela vastidão do país e do continente. Fazia 21ºC e ventava pouco, mesmo assim um vento quente, abafado, que fazia com que o melhor lugar para se estar no momento fosse a sombra de uma das incontáveis coníferas que sapecavam toda a região montanhosa. Já haviam saído há aproximadamente uma hora da cidade grande mais próxima, Helena, capital do estado de Montana, e agora se aproximavam cada vez mais de seu objetivo. Um terreno de aproximadamente 5 acres onde pretendiam montar uma cabana e passar o próximo ano inteiro, vivendo em conjunto uns com os outros. Era quase como a experiência de Black Bear que James e Miranda já haviam participado, mas dessa vez apenas entre amigos e também não pretendiam viver a vida dura apenas da terra.
            O local havia sido escolhido já adiantado, por James e Sean em uma de suas passadas pela região. Poucas pessoas por perto, mas ainda assim a proximidade de uma cidade grande. Sean comprou o terreno, e teve a ideia juntamente com James durante uma noite de Jazz e Uísque em um bar na rota 90. Precisavam agora apenas chegar, desembarcar os primeiros mantimentos e barracas, e começar a buscar as primeiras toras para o início do trabalho.
            A montanha Bitterroot fazia parte de uma cadeia gigantesca que seguia através das rochosas e ia parar apenas no Alaska. Era um local bonito, a paisagem era extremamente agradável, a vida selvagem era farta mas não necessariamente perigosa e o clima contribuía com pouca precipitação e nevascas que não eram tão fortes. Além do mais, quando pronta, a cabana serviria como boa proteção contra as intempéries do inverno. O mês de julho fora escolhido por essa razão. Clima bom de verão para o trabalho inicial na cabine e também para todos irem se acostumando gradualmente à ideia, até que chegasse dezembro com suas temperaturas abaixo de zero e suas neves.
***
            Algumas horas após o desembarque, o terreno estava sendo limpo por Evelyn e Miranda, Sam cuidava de uma pequena horta que seria seu passatempo durante boa parte da estadia no local, Lee fora encarregado de montar o acampamento e juntar madeira pra o fogo das primeiras noites, por fim, James e Sean se juntavam com machados e serrotes no trabalho de juntar o maior número de troncos durante aquele primeiro dia.
            Sean marchava na frente, com botas pretas, calça marrom, uma camisa xadrez de lenhador e uma touca verde, era a imagem do trabalhador das montanhas, fumava um cigarro e esbravejava sobre o quão bonita ficaria a cabana depois de pronta.
            - Cara, essa cabana vai ficar demais, DEMAIS! Não vejo a hora de passar noites e noites curtindo o melhor uísque que tiver enquanto me aconchego numa boa pele de urso na frente da lareira.
            - É, e eu tenho uma coleção de livros do Dostoiévski pra devorar só nos primeiros meses. Ainda não acredito que o avô do Paul me mandou todas aquelas relíquias.
            James deu uma respirada forte, o ar das montanhas entrou em profusão em seus pulmões. O cheiro de terra era forte, bem como o da resina dos pinheiros da volta. Se sentia bem ali, aconchegado, sem necessidades.
            - Cê perdeu o papo de um casal que a gente viu quando tava comendo naquele restaurante no último posto da 90 lá atrás. A mulher e o cara, provavelmente algum casal de classe média alta e com filhos já criados em uma viagem por aí. Ela cheia de jóias e o cara um perfeito almofadinha.
            - Nossa, a nata da sociedade, garanto que tavam comendo panquecas, tomando café e se achando belos viajantes.
            - Nem sei, mas me prendeu foi o assunto que eles travavam. Ou melhor, era quase um monólogo da mulher. Ela falava sobre a filha, uma engenheira que tinha se mudado pelo visto e dizia pro marido ‘Nossa, mas eu concordo com ela, algumas profissões realmente merecem receber mais, como é que a nossa cidade pretende segurar os profissionais pagando uma mixaria. Nessa outra cidade ela vai ganhar quatro vezes mais.’
            - Caramba, quanto será que ela tava falando?
            - Ela comentou algo em torno de 4 ou 5 mil por semana, uma boa grana.
            - Boa grana.
            - Grana demais, e outra coisa, o que diabos aquela velha sabe sobre alguns merecerem mais. Cacete, Sean, há anos atrás um idiota de bigodinho começou uma guerra por achar que alguns merecem mais que outros.
            Sean deu uma enorme gargalhada – CACETE, JAMIE! Cê acha que uma velinha de classe alta vai começar a Terceira Guerra Mundial?
            - Não é esse meu ponto, o que quero dizer é esse tipo de gente idiota que ainda acredita em méritos maiores pra posições melhores. Isso é pura babaquice, é manutenção de uma hegemonia tosca, boçal.
            - É claro que é meu velho, quando eu não tô com vocês bebendo e mal vestido, quando eu entro de terno num escritório com meu nome na porta, as pessoas me tratam como doutor e me pagam um horror de dinheiro pra eu não fazer quase nada. Diabos, cara, tem colegas meus que recebem horrores pra tirar criminosos de prisão e tudo fica tudo bem. Afinal, a nossa profissão merece receber mais não é mesmo? – comentou brincando Sean.
            - Isso me irrita, e a forma com que aquela mulher falou aquilo me irritou mais ainda, não sei por que não me intrometi. Queria ver a vida dela sem o cara que faz o cafezinho, ou melhor, sem o cara que planta o café, sem os artistas que fazem música, teatro, televisão. Queria ver a vida dela só com a bela filha engenheira que recebe 5 mil dólares por mês. Mas sem o lixeiro pra coletar toda a porcaria que ela deve ingerir com essa grana. É uma bobagem, as pessoas inventam patamares de evolução pra se acharem umas melhores que as outras, e no fim das contas aquela mulher se esquece que se abrir o intestino dela, tem a mesma coisa que tem no de todo mundo. Diabos, Sean, eu conheço pelo menos umas 20 ou 30 pessoas que são dez vezes mais pobres que ela, mas que tem muito mais valor. Não consigo deixar de pensar que muita gente nesse mundo é um desperdício enorme de oxigênio.
            - Com certeza cara, mas e o Paul então, é um babaca por não querer vir. – comentou Sean, mudando um pouco o assunto.
            - Eu entendo o Paul, cara. Ele virou mais um na multidão, mas tudo bem, ainda assim ter dinheiro ou não, não fizeram ele pensar que é melhor do que ninguém. Ele continua o mesmo cara bom de sempre, que valoriza todo mundo de forma igual, diabos, foi quase por isso que a Estella deixou dele. Diabos, aquela velha é a Estella no futuro, amarga e se achando melhor do que todos.
            Sean deu uma risada. Os amigos seguiram o trabalho por horas e horas, enquanto o sol permitia. Trazendo todas as toras para perto do acampamento.
            Já no fim da tarde, James fora o último a tomar banho no chuveiro improvisado com lata, pregos e uma quantidade grande de água do lago. Ao sair viu Sean bebendo com Lee na beira do lago, lá no meio a canoa de Sam vagava lentamente enquanto ele esperava que algum peixe fisgasse o anzol. Evelyn se encontrava perto do fogo lendo um livro e Mirando havia decidido preparar alguma comida no fogareiro. Ali estavam eles, diferentes em profissões, diferentes em aspirações, mas nenhum se achava melhor do que ninguém. Nenhum achava que o fato de ter tido um pouco mais de oportunidades dava a eles o direito de se tornarem seres humanos podres.
            James olhou rapidamente para o céu. As estrelas brilhavam em força máxima sem as luzes da cidade para disputar seu brilho. James pensou que nada daquilo importava. Queria pensar nos próximos doze meses ali. As pessoas podres como aquele casal haviam ficado para trás, naquele restaurante do posto de gasolina, eles que rolassem nas notas de dinheiro que tanto amavam. É isso mesmo, ‘dançem, macacos, dançem’, sigam o ritmo imposto pelas notas e esqueçam o que vale de verdade, façam apenas o que foram programados a fazer por pais mais idiotas do que vocês mesmos. James ficaria ali, com os amigos, com o que importava. E esse havia sido apenas o primeiro dia.