Eu me encontrava ali, parado na frente do apartamento. Uma garoa fina de outono tocava suavemente o vidro frontal do carro. A luz do 202 apagou, 2 minutos depois Miranda já estava abrindo a porta, carregando apenas uma mochila dessas de camping. Correu até o carro e jogou sua mochila no porta-malas. Entrou e sentou no banco do carona e de pronto já colocou uma música no toca fitas. Depois disso me deu um beijo de leve e gritou, “Vamos nessa!”.
Eu me perguntava de onde vinha toda aquela energia de Miranda. Ela era semelhante a sua irmã Evelyn, mas ao mesmo tempo a sensação de estar na presença de cada uma era de água e vinho. Eram semelhantes em toda suas diferenças. A energia contagiante era a mesma, porém Miranda emanava uma sensação de segurança, ao menos assim eu pensava, e conforto, vindos apesar de toda sua loucura. Já Evelyn mantinha aquela proximidade distante, e eu sempre me sentia como que pisando em ovos. Talvez eu tivesse enlouquecido por estar me metendo com a Miranda, mas eu estava sendo impulsivo pela primeira vez na vida e sentia um medo e um suador que não eram comuns a mim. De certo eu estava finalmente me tornando maduro, ou então tinha enlouquecido de vez.
A questão é que eu precisava de um tema para meus escritos e eu não tinha mais inspiração. Comentei isso numa noite entre os amigos e Miranda me disse que estava se preparando para viver uns tempos em uma comunidade auto-suficiente na costa oeste. A idéia pareceu tentadora e assustadora, e logo que ela perguntou, com toda simplicidade do mundo, se eu queria me juntar, aceitei. De modo que, ali nos encontrávamos, com poucos mantimentos que juntamos e dinheiro apenas para a gasolina até o Rancho Black Bear. Aquele rancho se encontrava lá na costa oeste desde a década de 60, e por lá centenas de pessoas já haviam passado em busca de uma vida mais em comunhão com a natureza ou então com idéias diferentes sobre como o funcionamento da sociedade deveria ser. Eu havia visto nisso uma boa oportunidade de refletir um pouco, ao mesmo tempo em que conheceria pessoas novas e inspiradoras para minhas histórias malucas. Miranda via naquilo quase uma nova seita religiosa, o que me assustava um pouco, mas Miranda sempre fora assim, astuta e decidida, e talvez um pouco instável.
Zarpamos no início da noite e tínhamos algumas horas de viagem pela frente até a primeira parada, eu não esperava por uma viagem tediosa e sem incidentes, mas qual não foi minha surpresa quando chegamos lá sãos e salvos, na data esperada e sem problemas durante o percurso.
***
Logo que chegamos um cowboy com cabelo e barba longos veio nos receber, se identificou como Wade e Miranda parecia conhecê-lo, nos apresentou rapidamente e então Wade começou a dar um panorama geral de como as coisas funcionavam no rancho: era um regime totalmente comunal, cada um ajudava com o que soubesse fazer, moravam todos na mesma casa, dividindo as roupas que ficavam em um local comum, não haviam quartos específicos e o grupo não encorajava casais, apesar de não ser contra a existência dos mesmos. Notei um certo sarcasmo por parte dele quando falou isso, já que certamente ele notara que éramos um casal por nosso modo de nos portar. Wade me pareceu de inicio um cara canastrão, lembrava um pouco o Sean, mas a malícia dele parecia um pouco venenosa.
Acomodamos então as roupas que trouxemos no grande armário comunal e logo nos juntamos a todos perto da lareira para curtir um chá. Havíamos chegado atrasados para a janta, mas não havia problema porque paramos em um bar de beira de estrada no fim da tarde onde comi uma torrada e tomei um café forte com bastante açúcar. Seria meu último café pelo próximo mês, então me certifiquei de que fosse bem degustado. Tive alguns papos bem legais com pessoas diferentes naquela noite. Conheci um ex-advogado de Los Angeles que havia decidido largar tudo em busca de uma vida mais em paz, um senhor aposentado, ex-militar, que sentia que precisava se castigar por todas as mortes que já havia causado e também um casal de Seattle que tinha uma banda de rock e decidiu se isolar em Black Bear para tentar se afastar das drogas. Mas dentre todos que conheci, definitivamente a pessoa mais interessante, foi uma mulher com cabelos escuros que não sorria muito e parecia falar apenas com algumas pessoas. Ela me chamou atenção primeiramente por sua beleza, mas depois pela estranheza de sua presença naquele lugar, fiquei extremamente curioso para saber por que estava ali, quais suas razões. Nisso me levantei e me sentei no chão ao seu lado, em um grosso tapete de lã de ovelha que ficava perto da lareira.
- E então, qual a sua história? Por que está aqui? - perguntei ao me sentar.
Ela me olhou rapidamente e então deu mais um gole do seu chá. Após respondeu:
- Acho que a mesma de todos, vida estressante, precisava de um tempo, curiosidade, talvez minhas razões sejam uma mescla das de todos os outros. Ou talvez eu simplesmente não tenha razão nenhuma.
- Me parece que eu vejo aqui uma pessoa bem confusa quanto a si mesma. Me chamo James, mas em geral me chamam de Jamie.
- Eu me chamo Amy, e não, não sou tão confusa, só não tenho uma razão bem clara para estar aqui, ou não quero partilhar ela. Minha vida sempre foi segura, financeiramente, sempre tive facilidade com relacionamentos, e ultimamente não tinha grandes preocupações. Mas simplesmente tive vontade de vir.
- Assim, do nada?
- Isso mesmo. - disse ela com um sorriso no rosto pela primeira vez - E você. Já que me julgou tanto, por que VOCÊ está aqui?
Parei um pouco e então resolvi ser bem sincero - Pra ser sincero eu nem pensava em vir, fui meio que arrastado por minha namorada, e também porque pensei que podia me render um pouco de inspiração pra minhas histórias.
- Ótimo, o cara com a razão mais egoísta e inútil de vir pra cá tava me julgando, típico. Acho que descobri na verdade a razão de vir, queria me afastar de pessoas como você.
- Hey, hey. Não precisa se apressar tanto em me julgar, não sou tão egoísta como você tá pintando. É verdade que vim talvez pelas razões erradas, mas independente disso o lugar me pareceu bom, pretendo me entregar.
- HÁ HÁ HÁ! - Amy soltou uma grande gargalhada - Nossa, mas que cara mais sério. - assim ela se levantou e me esticou a mão - Vem, vem comigo que quero te mostrar uma coisa legal.
Estiquei a mão, meio atônito pelas atitudes estranhas dela, dei uma olhada para Miranda, ela conversava entretidamente com Wade, e apenas me deu um sorriso como que dizendo “divirta-se”. Seguimos para a rua e então paramos alguns metros à frente, na beira de um lago lindo e extremamente calmo. A lua cheia refletia perfeitamente naquele lago, como um espelho sem nenhum arranhão. Amy então quebrou o silêncio:
- Sabe a velha metáfora do lago que parece paralisado em sua superfície, mas por baixo é um turbilhão de movimento de peixes e areia e outras coisas? Pois então, essa sou eu, essa é minha grande razão de estar aqui, quero a calmaria lá embaixo também, ou então o turbilhão na superfície, não agüento mais essas duas forças dentro de mim, me rasgando ao meio e me disputando a cada segundo. Nem que eu não possa mais refletir essa lua tão bonita, quero ser inteira e não duas metades.
Olhei para as lágrimas em seus olhos enquanto falava, me perguntava onde havia parado aquela mulher tão forte de minutos atrás. Ela agora parecia uma menina assustada e aos poucos foi se escorando em meu peito em busca de um pouco de amparo.
- Se você usa o lago como metáfora, então eu uso o oceano, eu sou como aquele mar revolto, sou apenas o resultado de todos os rios e córregos que despejam suas águas em mim. O James por si só não é ninguém, eu preciso de algo desaguando em mim constantemente. Por isso disse que buscava inspiração aqui. Não histórias insípidas e sem alma, mas almas verdadeiras que possam comigo trocar, idéias, ideologias e talvez sorrisos e lágrimas. - me peguei, enquanto falava, acariciando seus cabelos.
- Eu ouço seu coração acelerado. - me disse ela como se fosse realmente uma criança ouvindo aquelas batidas pela primeira vez - Sinto tanta calma com esse som, sinto que conheço você há décadas, como se fôssemos velhos amigos.
Não sei quanto tempo ficamos ainda ali parados, na beira do lado, abraçados, sem dizer palavra nenhuma, apenas ouvindo um o coração do outro. Uma conexão que até hoje não consigo entender exatamente. Então Segui novamente os passos de Amy.
Quando entramos na casa a maioria das pessoas já estavam deitadas em algum quarto. Passamos por alguns deles e vimos alguns casais formados. "Quando subimos para o segundo andar pude ver, do outro lado do corredor, a silhueta de Wade e Miranda, ambos estavam deitados na mesma cama, sem roupas, e pareciam não ligar para quem quer que os notasse. Apesar de todos os sentimentos que passavam por minha cabeça naquele momento não pude deixar de sentir que aquela cena era bela."*
Entramos em um quarto, nem mesmo ligamos as luzes, não havia necessidade. Tiramos as roupas mais pesadas e deitamos embaixo de um cobertor de pena de pato. Era simples, como se não precisássemos falar nada. Dei um beijo na testa de Amy e então ela se deitou com a cabeça colada em meu peito.
- Vou dormir aqui, ouvindo seu coração. Boa noite. - disse ela já com a voz cansada de sono.
- Boa noite. - respondi, afagando levemente seus cabelos.
Me levantei no outro dia em silencio, dei mais um beijo em sua testa antes de me vestir e sair do quarto. Miranda ainda se encontrava deitada com Wade no quarto ao fim do corredor. Fui até meu carro e dei a partida. Deixei o Rancho depois de apenas uma noite. Se era inspiração que eu buscava eu havia encontrado, sentia que minha conexão com Amy seria para toda a vida. Mesmo que eu nem mesmo soubesse seu último nome ou seu telefone. Era para ser assim, eu sabia e ela também. Não me senti mal, nem culpado, sabia que ela entenderia perfeitamente, sabia que me lembraria dela sempre, e sabia que o tamborilar do meu coração iria embalar seu sono em todas as noites em que se sentisse solitária.
* Cena retirada do documentário "Commune", de 2005.
* Cena retirada do documentário "Commune", de 2005.