27 de março de 2011

Homem Urso ...



            Chovia demais naquela noite. Sean se encontrava na janela, fumando um cigarro. Eu sentado no chão, recostado em uma poltrona na qual costumava dormir durante as tardes frias do inverno. Paul, quieto, se mantinha trabalhando em seu computador. Esporadicamente dava uma bicada em seu Johnny Walker, então seguia trabalhando desembestado. Estella e as crianças estavam viajando. Tinhamos um local para ficar durante a noite.
            - Olha só aqueles bêbados trôpegos entrando naquele beco. Aposto que vão fazer alguma bobagem - Trovejou Sean, dando uma boa gargalhada.
            Levantei-me calmamente e fui até a janela, cheguei a tempo de ver um casal bastante alterado se agarrando furiosamente enquanto desaparecia nas sombras do beco.
            - Instinto, Sean. Puro instinto. Já contei da vez que fui para aquela cabana com os budas gigantes me vigiando? - Comentei sem me alterar muito.
            - Só umas cem vezes, Jamie. Mas tudo bem, eu escuto outra vez.
            - Pois dessa vez não vou contar sobre os fatos ocorridos naquelas noites. Vou contar sobre a revelação que alcancei naquele lugar. Lá eu aprendi o que é ser um Homem Urso. Apenas a companhia do grande urso negro me manteve vivo, e lá eu renasci novamente.
            Sean me olhou desconfiado e então comentou - Que tipo de drogas você levou pr’aquela cabana?
            - Apenas um pouco de água e mantimentos para uma semana, de resto pretendi viver como um total homem primitivo. Não gosto desse termo, mas o uso para facilitar seu entendimento. Caçar, cortar madeira, buscar água no poço. Eu havia nascido com todas as ferramentas necessárias, meu amigo. Precisava aprender a usá-las, e o grande urso negro que os Cherokees falam em sua lenda me ensinou.
            Eu parei para ir buscar um pouco de água na geladeira, Paul havia parado de martelar o teclado e ouvia a minha história também. Olhou para mim e disse:
            - Continua, homem. Quero saber o fim dessa história.
            Voltei e me sentei na minha cadeira por uso capião, então continuei contando:
            - Pois bem. Apesar das provisões para uma semana, vocês bem sabem que eu fiquei lá por mais ou menos um mês, depois de um tempo eu parei de contar os dias e perdi essa noção. Desisti também de fazer a barba e todas essas outras distrações que me faziam gastar um tempo precioso daqueles belos dias. Tomei banho naquele riacho com a temperatura já nos negativos. Comi peixe sem medo de espinhas e devorava quaisquer frutos ou sementes que encontrava. Meu olfato já podia sentir esses diferentes cheiro de longe.
            - Quer dizer que virou mesmo um homem das cavernas? – Gritou Sean, dando sua gargalhada tão típica.
            - Um homem urso. Entenda Sean, para mim o homem urso significa o homem que mantém suas próprias regras. Um homem que mantém uma ligação com a natureza ao redor e com a sua própria natureza selvagem, se assim posso dizer. Vivo por meu próprio código de conduta, não me encontro na cidade, nunca mais me encontrei totalmente aqui. Vocês me conhecem melhor do que ninguém.
            Paul então disse:
            - Mas está aí, bem tapado agora, quase tremendo de frio e desfrutando de água da geladeira e uma boa lasanha congelada.
            - Aquele homem urso teve que ficar lá, aquele homem morreria aqui, o cheiro daqui destruiria o olfato dele. Ele não entenderia as pessoas. Ficaria acuado ou raivoso. Aqui está de volta o James que vocês sempre conheceram. Mas agora com algum conhecimento a mais de si mesmo.
            - James, você é o cara mais maluco que conheço cara, sério. E você não bebeu nada hoje. Diabos, me passa um pouco de scotch, Paul, isso merece um brinde.
            Brindei com eles em meu copo d’água. Não sei se entenderam minha história, não sei se queriam entender ou se buscavam apenas um pouco de diversão para uma noite chata ou uma folga do trabalho. A verdade é que é estranho entender os homens urso, apesar de ter sido um naquela experiência, eu voltara a ser um homo urbanus. Eu nada mais tinha daquele urso negro, apenas a lembrança do que vivi, e como flashes difíceis de serem entendidos. Pode ser tudo apenas uma enorme viagem da minha mente, ela se perdeu completamente em algumas noites e dias que vivi naquela cabana. Estava “sozinho no topo da montanha”, como meus maiores heróis certa vez já estiveram. Renasci duas vezes, e as lágrimas foram um rito de passagem ao descer até o sopé da montanha. Me despedi dos budas e do urso negro. Voltei a ser o velho James, não sei se marcado pela experiência, já que dela pouco me lembro. Só sinto que viver aquilo foi necessário naquele momento. Me fechar para mim mesmo.Viver as regras que havia criado dentro e mim, tornar-me um urso selvagem. Um verdadeiro homem urso.

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Para quem possa interessar, a lenda Cherokee do Homem Urso pode ser encontrada aqui (texto em inglês): http://www.firstpeople.us/FP-Html-Legends/TheBearMan-Cherokee.html

Um comentário:

Michele Moura disse...

"Mas agora com algum conhecimento a mais de si mesmo." -- Nem todo mundo tem a coragem necessária para buscar um conhecimento verdadeiro de si mesmo... E isso é triste, pois faz com que as pessoas vivam em função de coisas que não são realmente importantes. Vivem uma vida ilusória.

Interessante a importância do tempo na lenda do Homem Urso. Tinha um tempo que ele precisava viver com o urso, e um tempo que precisava ficar só para 'eliminar' de si o urso. Outro fato que a maioria das pessoas não sabe aceitar: o tempo das coisas.

Ótimo texto, João, como sempre. A tua sensibilidade para coisas profundas é única.