Era
sábado a noite, um sábado qualquer na cidade que não dormia nunca. O primeiro
garoto era negro, nascido pobre, trabalhara desde cedo no que podia, comia o
pão que o diabo amassou, não conhecia o pai. O segundo era branco, loiro e de
olhos azuis, o pai era um influente empresário.
O
primeiro descia o morro sempre que podia pra ir à praia. Gostava de assistir ao
futevôlei na areia, as ondas quebrando na beira do mar, de vez em quando até
entrava na água, mas gostava mesmo era da vista daquelas vidas que, sonhava
ele, podiam ter sido a sua. O segundo também adorava a praia, ir com os amigos,
beber umas cervejas, azarar, surfar de vez em quando.
O
primeiro gostava de desenhar, muitos chamavam pichação, para ele era arte, de
rua, sempre a rua. O segundo não gostava, gastava, e era isso. O primeiro não
usara drogas nunca, era limpo, mesmo com todas as possibilidades ao redor. O segundo
perdia as contas do que já havia feito e visto.
E
veio o sábado a noite, o primeiro sentia fome, e andava pela rua, a mãe não
tinha emprego, os irmãos estavam perdidos, por uma razão ou outra, e ele seguia
com a arma no bolso da jaqueta de moletom. O segundo voava pelas avenidas no
seu carro, um fardo de cervejas adornava o assento do carona. 110km ... 120km
... as luzes riscavam o para brisas como pequenas explosões de êxtase.
O
primeiro gritou, a mulher gritou, e por fim a polícia gritou. O segundo gritava
extravasando a futilidade e inutilidade daquela existência. A polícia correu atrás
do primeiro, e em um beco sem saída viu o garoto encurralado. Ele levantou as
mãos, com calma, e um tornozelo vilão o fez tropeçar. O segundo acelerava cada
vez mais o seu carro.
BANG,
o primeiro caía lentamente no calçamento com uma bala no peito. BANG o segundo
atingia rapidamente um inocente pedestre em uma faixa de segurança. O primeiro
nunca mais desenharia, nem contemplaria o mar calmo e macio. O segundo gozaria
da influência do pai e do capital.
Um
deles era, o outro tinha. E entre o ser e o ter não se desenham tons de cinza. Há
uma fissura, quase intransponível. A vida do primeiro era regida por leis
básicas e inquebrantáveis, a do segundo era regida apenas pela própria vontade.
E nesses sábados a noite, domingos a tarde e segundas pela manhã, muitos outros
BANGs eram escutados pela cidade. E através da madrugada o som se espalhava com
o vento forte pelas ruas. Carregava a certeza de que mais uma vez a justiça não
enxergara o que deveria ter enxergado. Maldito som esse que acabava com razão,
palavras e sonhos. BANG, era o que espalhava a notícia de que há algo de muito
errado nos nossos valores. BANG, a tristeza agora tinha um som.