– Só preciso de uma garrafa de vodka e uma companhia pra conversa ao longo da
madrugada fria...
É assim que começa. Início da noite.
No bar já toca, há mais de cinco minutos, um álbum dos Smiths e isso deixa
Pedro totalmente deprimido.
– The Smiths. Que bandinha bem
boa... – diz ele ao ver o próprio reflexo na superfície do copo arredondado –
tem momentos da vida da gente que só Morrissey entenderia ...
– Como assim? – pergunta Bernanrdo,
dando uma risada por conta do comentário do amigo.
– Oras como assim! Quero dizer que
tem alguns poetas que conseguem entender no fundo algumas emoções que nós
sentimos, eles interpretam aquilo, preveem o sentimento, saca?
– Eu acho que tu já bebeu demais
cara... – decreta Bernardo, com um ar meio superior.
– Não não não! Isso não tem nada a
ver com bebida ou cigarro ou café. Tudo bem, eu admito que algumas substâncias
lubrificam alguns recessos da nossa mente, mas no meu caso é pura e simples
constatação. – enquanto fala isso, Pedro levanta a mão em busca de algum
garçom.
Quem atende é uma garçonete com
cabelos ruivos presos em um coque bastante justo na parte superior da cabeça.
– Mais uma Polar, guris? – inquire
ela, enquanto pega a garrafa vazia de cima da mesa.
– Por favor, Ju... – pede Pedro com
uma expressão de alegria – a mais gelada que tiver!
No momento em que ela vai em direção
à parte de dentro do bar, Pedro acende um cigarro com o final do anterior, da
uma tragada longa e se volta ao amigo.
– Pois bem, como eu ia dizendo. A
verdade é que o poeta tem uma alma extremamente sensível às diferentes mudanças
ao redor. É isso que faz dele descritivo de forma exagerada, sofredor de forma
extremamente dolorida, PORÉM... – Pedro corta a frase de surpresa, leva o
cigarro mais uma vez a boca, da uma tragada e exala a fumaça pelo nariz.
Nesse momento Bernardo ri consigo, é
clássico ao amigo dar esse tom dramático aos seus discursos regados à cerveja.
Além disso, traga o cigarro como se dele retirasse sua essência vital, como se
estivesse em um longo mergulho, e cada tragada representasse o momento que vai
à superfície em busca de ar.
– PORÉM... – repete Pedro - ... ele
precisa também de uma inspiração. Aí está, a característica ambígua do poeta,
ao mesmo tempo que deve sentir sem ter vivido, deve buscar viver aquilo que
sente. É quase como se ele fosse um náufrago no meio do oceano, ele precisa da
condição de náufrago sofredor pra continuar fazendo a arte dele, porém é
preciso que esse náufrago tenha algo de concreto pra que essa arte seja
alcançada. Como um bote... isso... um bote. O poeta é um náufrago no mar da
vida, navegando em um bote, ao mesmo tempo em que sua situação é de um
sofrimento sem fim, ele precisa ter a sensação de que um dia, em algum momento,
a situação dele pode mudar, o fio de prata da esperança, ou a cenoura na frente
do burro, como tu preferir. – conclui Pedro, com tom professoral, como se
tivesse acabado de fazer uma descoberta incrível no campo da física quântica.
– Hmmm, ok. Suponhamos então que em
toda poesia de amor, o que tá ali no papel é o que? Um desejo incontido por uma
pessoa linda e inalcançável? – pergunta Bernardo, entrando no clima da
discussão.
– Aí é que está o ponto! – exclama
Pedro, dando mais uma tragada no cigarro e exalando a fumaça pelas narinas –
Talvez a parte do inalcançável seja verdade, mas a parte do linda, aí se
encontra a maior construção do romantismo na história do mundo. A beleza da
pessoa desejada é, em última instância, ilusória. Fumaça e espelhos, na mente
de uma pessoa que vive entre dois mundos, o real e triste e o idílico e
perfeito. São as sombras na parede da
caverna, as sombras são uma ilusão, mas uma ilusão causada por algo concreto,
vivo e existente. A beleza são essas sombras.
– Isso significa que não existe
beleza? – pergunta Bernardo, conrrigindo-se rapidamente – Ou melhor, não existe
beleza unânime?
– Tecnicamente o que existe é a
idealização, é aí que eu chego no meu ponto. Todas essas descrições da
literatura, desde a Capitu do Machado até a Sybil Vane do Oscar Wilde. Pura
criação da mente absolutamente em transe de pessoas comuns. Talvez os olhos de
cigana da Capitu fossem sem graça, as faces alvas da Sybil completamente
esquecíveis. Quando tu vens e me pergunta se todas as “mocinhas” do romantismo
são os avatares de Afrodite na terra eu te respondo. Obviamente que não! Elas
são os avatares da mente completamente arrebatada de seus seguidores.
– A beleza está nos olhos de quem
vê... – cita Bernardo, dando uma risada.
– NÃO! Não me venha com clichês
baratos, talvez essa frase esteja certa, mas o meu ponto não é esse... – se
irrita Pedro, a despeito da frase de Bernardo ter sido uma brincadeira - o que eu quero dizer é simples, é que toda a
beleza e toda a perfeição que o romantismo criou não passam de um resultado
ilusório, são fruto do hipnotismo, da fixação de homens por mulheres, por
outros homens, por animais, pelo mundo...
– Cara, essa forma de ver as coisas
é meio deprimente...
– The Smiths me deprime... – comenta
Pedro, dá uma bicada no seu copo de cerveja e mais uma tragada em seu cigarro.
Um casal se aproxima dos dois amigos
sentados na mesa de madeira do bar, todos se cumprimentam com grande
entusiasmo, puxam um par de cadeiras, ao mesmo tempo que Pedro levanta a mão em
direção a algum garçom. A garçonete do cabelo ruivo novamente responde ao
chamado.
–
Vê mais duas garrafas, pelo visto a plateia aumentou e a noite mal começou...