9 de novembro de 2011

Dias de Esperança ...



            James, Sean e Samuel conversavam ao redor da fogueira feita em uma pequena área mais baixa perto da estrada. O fogo crepitava vez ou outra, em intervalos cadenciados e criava um certo tom de monotonia para o assunto. Os três amigos se encontravam deitados cada um em seu colchonete e usavam as capas de chuva como cobertor contra o frio e o vento. Não que o clima se mostrasse muito ruim, mas sabia que durante as próximas horas da madrugada a tendência era a de piorar. Acima do fogo uma chaleira esquentando a água que seria usada para misturar a pouca janta que haviam conseguido organizar. Alguns legumes, pouca quantidade de tomates secos que haviam trazido para a viagem e um punhado de ervas para temperar a água e dar um pouco mais de sabor. Sean havia conseguido pechinchar algumas batatas na pequena venda do último posto que haviam passado. A chance de arranjar um hotel para passar a noite era nula, pelo menos com os poucos trocados que cada um tinha no bolso e que seriam necessários para a volta para casa. Nunca os três amigos haviam se encontrado numa situação tão desestimulante e desesperadora como aquela.
            A conversa rodava em torno das possibilidades para a viagem do próximo dia e também os planos para arranjar algum dinheiro que pagasse pelo menos a gasolina. Talvez encontrar algum caroneiro com possibilidade de dividir a conta do posto pelo menos até a próxima cidade. Em alguns minutos a comida ficaria pronta, o assunto foi morrendo aos poucos, Sam esticou o braço e pegou seu violão, dedilhou alguns acordes, como se entrando em um transe do qual não sairia tão cedo. Sean acendeu um cigarro, a cada tragada soltava a fumaça com baforadas lentas e circulares enquanto olhava para o céu limpo e estrelado que indicava que o próximo dia seria novamente quente e sem possibilidade de chover. James tomava goles pequenos de sua garrafa de tequila, talvez aquilo pudesse diminuir a fome que ele já estava desde a última refeição, que não havia sido grande coisa.
            Estavam bem próximos à interestadual. Podiam ver e ouvir os caminhões que passavam vez ou outra pela estrada. Pensaram em acampar mais longe, mas não quiseram arriscar ir com o velho carro mais adentro no deserto. A areia podia fazer um belo estrago naquela banheira, sem contar a possibilidade de atolarem na areia solta. Não, o carro não se moveria mais um milímetro sequer para longe do asfalto. A missão foi então achar algum local abaixo do nível da estrada de modo a evitar o vento forte da noite que pudesse incomodar os três. Aquela viagem havia começado como uma missão de resgate. Sean estava preso, havia feito maus negócios e se encontrava impossibilitado de pagar trezentos dólares de fiança para sair da cadeia do condado de Harris. Ligou para James, esse também não se encontrava numa boa situação. Chamou Samuel e se deslocaram até o interior do Texas para tentar salvar o amigo. A fiança foi paga, mas nenhum deles tinha muito mais de reserva para a volta, além disso, a previsão era ruim já que Sean se encontrava desempregado, Samuel não possuía nenhum emprego fixo, tirando as poucas participações que fazia nos bares de quinta tocando com alguns possíveis “futuro expoente do jazz”. Caramba, pensava James, não existem expoentes do jazz, o jazz já morreu, qualquer novo músico jazzista já nasce fadado a fracassar. O próprio James não se encontrava em uma situação melhor. Há quase seis meses sem receber qualquer cheque de royalties por nenhuma publicação. Seu último livro de contos havia sido considerado um fiasco pela crítica que esperava algumas boas histórias. A verdade é que desde seu único livro de real sucesso não havia conseguido engatar nenhuma obra aceitável, muito menos por ele mesmo que era bastante autocrítico.  E a situação era essa, sem dinheiro, tendo que acampar durante a noite, e sem boas expectativas para quando chegassem em casa. Sean nem mesmo tinha uma casa para chegar.
            Alguns minutos de silêncio se passaram até que um casal passou por perto, caminhando no acostamento da interestadual. Carregavam algumas sacolas e o homem trazia ao lado de si uma bicicleta velha e enferrujada, em cima do bagageiro uma caixa de plástico, dessas que se usa para transportar legumes para os supermercados. Dentro dela uma menina de uns três ou quatro anos de idade. Cabelos castanho claros e encaracolados, a pele cor de caramelo. Os três tinham a pele assim na verdade. Eram visivelmente mexicanos, o homem era magro, com as maçãs do rosto salientes, o cabelo separado no meio, um pouco sujo, mas apesar do cansaço visível, trazia um sorriso infantil, quase ingênuo no rosto, como se tivesse a certeza que, apesar de quaisquer problemas, no fim tudo se resolveria. A mulher tinha o cabelo castanho claro, liso, amarrado em uma longa trança às costas. Aparentava ser bonita, mas era difícil dizer tal era a situação de desespero que parecia se encontrar. Independente disso seguia o marido carregando uma sacola grande nas costas. A menininha dentro da caixa olhava para os lados com os enormes olhos negros, com uma curiosidade invejável e uma chupeta na boca. Tinha olhos plácidos e revigorantes. Vieram em direção ao nosso pequeno acampamento.
            - Hola, amigos! – disse o homem acenando com a mão – Tudo bem?
            - Alto lá, o que querem com a gente? – respondeu Sean, já se levantando do seu lugar.
            Era fato que os tempos não eram mais como antigamente, e era difícil confiar em pessoas se aproximando no meio da madrugada numa autoestrada cheia de caminhões. Mesmo que essas pessoas fossem uma família de pobres mexicanos que provavelmente queria alguma direção ou algo assim. O homem levantou os braços como que em sinal de paz e disse:
            - Calma amigo, queremos apenas saber se podem nos dar um pouco da sua água quente para fazermos nosso jantar.
            James levantou de onde estava e se juntou ao assunto.
            - Não teríamos problema, mas a única água potável que temos sobrando é a que está naquela chaleira. Pensávamos em usar ela para nossa própria janta. – comentou James, com uma certa vergonha ao se referir aquela pobre sopa como uma janta.
            - Hmmm. Entendo amigo, mas parece que não vai ser uma janta muito farta. – comentou o mexicano, não de forma sarcástica, mas com uma leve ponta de pena no tom da voz – Quem sabe não podemos nos juntar e dividir um pouco do que temos?
            Sean abriu um sorriso e olhou para James, logo após encarou o homem sem tentar esconder o misto de desespero e felicidade e disse:
            - Diabos, ‘chicano, agora você falou minha língua. Cheguem mais.
            O homem se apresentou como Miguel Jimenez, a esposa se chamava Úrsula e a pequenina tinha o nome de Esperanza. James não conseguiu deixar de pensar na ironia daquele nome.
            Feitas as apresentações e após Samuel se juntar ao grupo, Miguel contou rapidamente sua história. Era natural de Tijuana, mas por muitos anos tentou a travessia para os Estados Unidos de diversas formas. Há quatro anos finalmente conseguiu chegar lá. Era um clandestino na Califórnia. Na cidade dos anjos. Logo que chegou foi recebido na casa de um velho conhecido de seu pai. O pai e esse amigo haviam trabalhado como mineradores quando eram jovens, o homem devia sua passagem e sua vida ao pai de Miguel. Tinha essa dívida com o garoto. Úrsula era filha do homem e o resto da história era de se imaginar. Amor, sonhos, felicidade curta e então um belo chute na cara dado pela realidade. Miguel trabalhava no que podia. Onde precisavam de mão-de-obra barata, lá estava ele e o exército de conterrâneos que trabalhavam fazendo de tudo por algum pouco dinheiro. A garotinha nasceu um ano depois de sua chegada ao país, e a despeito do nome, o emprego estava cada vez rendendo menos. Miguel não desistiu. Preparou suas coisas, juntou a família e resolveu tentar a sorte indo fugindo da costa oeste. “O clima não é tão bom, mas a concorrência há de ser menor”, disse ele à mulher numa noite de outono. Porém ficou trancado no Texas onde não conseguiu avançar muito mais, e ali estavam eles, há um mês já sendo praticamente explorados por um desses novos magnatas do petróleo que pagavam um salário de fome e mantinham empregados até que os mesmos não pudesse mais aguentar o trabalho. Miguel trabalhava sem parar coma família, e à noite caminhava aproximadamente oito quilômetros na direção da cidade vizinha, no meio do caminho ficava o que parecia ser um parque de trailers, porém havia nele uma porção de casinhas de um cômodo, e um banheiro comunal. Nas casinhas se via sempre um bando de mexicanos ou outros imigrantes que haviam tentado a sorte no país atrás do sonho americano e deram com os burros n’água. A verdade é que era exatamente disso que se tratava: sorte. James pensou consigo que, latinos nos Estados Unidos só conseguiam dinheiro mesmo quando viravam boxeadores ou bons jogadores de baseball, e as vezes nem assim. Era fácil ser absorvido pelo crime e etc. Mas gostava de acreditar que Miguel não tinha esse tipo de índole.
            À rala sopa dos três amigos, Miguel juntou algumas latas de feijão conservado que possuía, alguns pedaços de queijo e um pouco de água para beber que ainda tinha. A janta tomou pelo menos alguma semelhança ao que pode se chamar de refeição.
            Apesar de tudo, Miguel e Úrsula possuíam um sorriso contente no rosto quando falavam dos planos para o futuro. Miguel tinha forte crença de que as coisas iriam dar certo, melhorar. Foi com os olhos marejados que ele confessou que por vezes tinha precisado misturar um pouco de aguardente com o leite da filha para que adormecesse e parasse de chorar a noite. James engoliu em seco, tinha certeza que os amigos também. Não podia acreditar na esperança que nutria aquele homem a sua frente. A fibra que mantinha no corpo magro e com as maçãs do rosto saltando. Os braços desgastados do trabalho e da vida, as mãos com muitos calos. Porém ali, sorrindo e comendo o que tinha como se fosse a melhor refeição do mundo. Não tinha como não sentir uma enorme admiração pela força de vontade daquele pobre homem. Apenas mais um entre tantos desses “cidadãos de papelão” que vivem à margem da sociedade. Que servem como massa e combustível para alimentar riquezas e modo de vida de tão poucos que são de fato agraciados pelas maravilhas do capital. Esse homem, dentre tantas as possibilidades, foi quem parou ao lado deles e estendeu o pouquíssimo que tinha, sem nem ligar que eram homens brancos, americanos, e que possivelmente tinham tido todas as chances nessa vida de terem mais conforto do que ele. Chances. James sentiu uma pontada de tristeza ao pensar nisso, que uma grande maioria tinha essas chances podadas, quebradas, pulverizadas desde o berço pela sociedade, essas chances e oportunidades que a vida, ao menos em sua essência, teria por regra dar a todos, como iguais.
            A janta passou. Miguel e a família se despediram ainda com o sorriso no rosto e uma frase de boa sorte nos lábios. James e os amigos se entreolharam. Todos entendiam. Não era preciso palavras. Haviam dividido não apenas a pouca comida que tinham naquela meia hora ali, haviam somado esperanças. Haviam de fato vivido como se deve viver. Seis seres humanos, compartilhando o que tinham naquele momento, comida, sorrisos e uma conversa descontraída. Haviam sido salvos por Miguel, e queriam acreditar que tinham ao menos ajudado um pouco aquele que se mostrou tão bom para eles. “Ao povo o que é do povo”. James sentia o sono vindo aos poucos. Conseguia ver Miguel chegando à costa leste, encontrando algum emprego que lhe desse condições de viver melhor, e quem sabe até salvar a noite e a janta de mais algum caroneiro ou viajante por essas estradas da vida. E sobre o futuro, ele apenas espera que dias melhores viesse, que oportunidades mais justas virassem realidade, dias melhores para Esperanza, dias de esperança.